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  28/08/2019 - por Cinthya Iamile



Uma criança no final dos anos 1940, do interior do Amazonas, daqueles em que nem luz e água encanada existem até hoje, nos seus 9 anos veio para a capital morar com os parentes mais abastados para “estudar” e ter uma vida melhor do que a que se prometia naquela terra onde nasceu. A menina se chamava Maria e logo descobriu que estudar era mais sonho que a dura realidade que ela encontrou: acordar todos os dias às 5h para “ajudar” nas tarefas do mercadinho da família que a trouxera, lavando e limpando tudo, sem muito tempo para outras atividades. Cresceu nessa condição e pouco aprendeu de fato, a não ser ler e escrever o básico que interessava.

A menina sonhava em aprender outras coisas e ter sua casa, seu lar. Conseguiu fazer a duras penas um curso de auxiliar de enfermagem, pois não precisava saber muito, mas sim ter força de trabalho duro, que ela tinha. Mesmo assim ainda ouviu: “Pra quê estudar? Mulher não precisa disso”. Conseguiu emprego e finalmente começou a crer que poderia ter vida melhor fora da casa dos parentes. Então casou-se, mas pouco pode ter nesta relação que se acrescentava aos seus sonhos de menina. Teve sua primeira filha, que morreu ainda bebê por não ter tido acompanhamento médico e depois a segunda e a terceira, mas o casamento não vingou – como dizem os antigos.

Separada, tendo que enfrentar todo preconceito da época, criou suas duas filhas sozinhas, fazendo bicos, cuidando de idosos, vendendo salgados, bolos, o que pudesse para pagar as contas. Nunca deixara uma conta vencer.Antes ficar sem o que comer um dia do que ter alguém cobrando conta atrasada dela.

Para ela, não restava mais sonhar, e sim sobreviver. Mas para as filhas, ela desejava um mundo totalmente diferente do dela. Sabia que dinheiro elas não teriam como herança, casamento não era fonte de segurança – ela bem sabia. Então agarrou-se à única coisa que sabia poder ser forma de mudança de vida, uma coisa que ela almejou mas não pode ter como quisera: EDUCAÇÃO. Seria sua herança! Seria a salvação de suas filhas! Elas estudariam tudo o que ela não pode, elas chegariam aonde ela jamais pode vislumbrar. Elas teriam outra vida.

E para poder conseguir isso chegou a ficar dois, três dias no sol e na chuva, a cada ano, para garantir vaga para suas filhas em escolas públicas perto de casa, caso contrário, como iriam para a escola se fosse longe? (naquele tempo não havia a vantagem da matrícula online). E ela sempre conseguia, a duras penas, mas conseguia!

Suas filhas estudaram em colégios públicos municipais, estaduais e até federais (no antigo segundo grau – hoje Ensino Médio). Nunca permitiu que elas faltassem aulas, que deixassem de fazer seus trabalhos escolares. Material escolar? Tinham o básico. Os livros eram comprados, à época, com auxílio de uma madrinha e um padrinho que sempre estavam por perto. O pai ajudava às vezes sim, sempre que podia ou aparecia para vê-las. Mas suas filhas conseguiram chegar ao final do segundo grau e almejaram sonhar mais, pois agora eram elas que queriam fazer por sua mãe guerreira. O sonho de um nível superior, um emprego melhor, uma casa que não estivesse caindo aos pedaços (literalmente) foi possível pela aprovação num concorrido vestibular em uma Universidade Pública! Mais uma vez!

E elas fizeram seus cursos. E como foi difícil! Muitas vezes, a filha mais velha só tinha o dinheiro da passagem de ônibus (meia passagem, graças ao direito conquistado pelos estudantes) para ir à faculdade. A volta ficava na sorte de conseguir carona para, pelo menos, perto de casa, ou um empréstimo de alguma colega ou ia a pé mesmo. Para almoçar, o dinheiro às vezes também não dava (imagina se já não tinha para o ônibus). As amigas nem sempre podiam pagar – também tinham suas limitações financeiras, mas repartiam o bandejão do RU com a filha de d. Maria. Graças à amizade real, sincera, companheira. Essas ficam para a vida toda!

Veio a necessidade, após finalizar o curso, de aprimorar-se. E veio a pós-graduação. Mais uma vez em IES Pública! Com excelentes professores! E essas filhas de Maria ousaram mais e passaram em concursos públicos. Hoje são também professoras, além das profissões escolhidas (uma farmacêutica e a outra profissional de Educação Física). A D. Maria hoje pode ver o que conquistou com todo seu esforço, pode ter conforto, pode viajar, ter plano de saúde, ter uma casa digna dela.

Final feliz? Não! Por que não acabou! D. Maria tem netas. D. Maria ainda sonha ver suas netas também formadas. Ela se realiza assim. Ela não pôde, mas criou uma pequena geração que pode. Mas não bastou o sonho e a garra dessa mulher, precisou a contrapartida: existir ensino público de qualidade e perto dela!

Agora, penso aqui comigo: já imaginou essa história sem essa contrapartida? D. Maria nunca, nunca mesmo ia poder financiar a educação das filhas. Elas teriam o mesmo destino da mãe, quem sabe pior... Que bom que temos isso em nosso país. Que bom que se pode mudar a realidade, não é?

Pois é... a realidade pode mudar sim. Umas vezes para melhor e outras para destinos que custamos a crer de tão escabrosos que são. Ah, nossas escolhas!

Analisando detalhadamente a proposta do Governo Federal FUTURE-SE, fico pensando em quantas Marias que estão espalhadas pelo Brasil, sonhando em ter uma vida mais digna e crendo que a educação ainda é o caminho, serão afetadas diretamente, pois seus sonhos continuarão sendo só isso: sonhos!

É por causa desta Maria, em particular, e por todas Marias, Josés, Franciscos, Anas... que sou contra essa proposta FUTURE-SE, que não diz claramente como vai ser gerida, mas nos dá nas entrelinhas a visão da privatização que tanto tememos. Enquanto Maria sonhar, eu pretendo continuar resistindo!

A Maria da história é real. Está com quase 82 anos. A filha mais velha sou eu, professora universitária, que muito agradeço tudo o que aprendi neste mundão, mas a lição mais importante aprendi em casa com ela. Ah, isso eu me orgulho em repetir sempre: “SEM EDUCAÇÃO VOCÊ NÃO É NADA, NUNCA SE ESQUEÇA!” (e de QUALIDADE, SEMPRE!)

* Cinthya Iamile é doutora em Farmacologia pela Universidade Federal do Ceará e professora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB)  da Ufam.



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