*Com cópia para colegas da UFAM e eminentes parasitólogos brasileiros
Inicio esta missiva afirmando a posição de que você está sendo vítima de uma grande injustiça: a de, por decisão do Conselho Departamental do ICB, estar sendo considerada não qualificada para ministrar aulas de Parasitologia para os cursos da área de saúde. Injustiça que, verdade seja dita, não foi feita por seus novos colegas de área, que não endossaram tal argumento.
Em seguida, gostaria de explicitar a principal questão que me moveu a escrever e divulgar esta carta: a de que nem sempre se faz justiça, mesmo quando a decisão é "democrática". "Democrática" entre aspas para diferir certa noção de democracia (em certo sentido jacobina) de outra, que se pauta em reflexões criteriosas, aprofundadas e críticas e que, ao invés de impor a outros, pelo voto da maioria, certa decisão, compromete-se com uma visão mais plural e coetânea. Lembro também o caso de Sócrates, o grego, que podendo fugir da morte, preferiu enfrentar seu próprio julgamento por seus conterrâneos, acreditando na força de sua oratória no poder da razão, que faria com que os gregos escolhessem entre os melhores argumentos. Acabou derrotado por uma racionalidade mais tosca, oriunda de forças conservadoras que o condenaram à morte, ainda que com "piores" argumentos.
Cara amiga, não sendo eu Sócrates e passados alguns milênios do aludido fato, é certo que não tenho essa crença ingênua e já vislumbrava situação como esta. Enfim, ao menos não precisaste, no sentido literal, beber cicuta, ainda que certa cicuta simbólica certamente arda em suas entranhas.
Ampliando a discussão para que todos os colegas conheçam um pouco mais da situação, perguntaria: porque, contrariamente à posição dos professores, pesquisadores e especialistas em Parasitologia da UFAM, decidiram a maioria dos professores das demais áreas do Departamento de Parasitologia e do Conselho Departamental do ICB?
Ou, ao contrário, porque a área de Parasitologia considerou que uma parasitóloga de peixes estivesse apta para lecionar a parasitologia dita "humana"? O que pautou a decisão da área? Primeiro: a própria estrutura e história de constituição da área de Parasitologia no Brasil (organizada em torno da Sociedade Brasileira de Parasitologia), que não se dividem entre "parasitólogos humanos" e "parasitólogos animais". Lembremos que o autor do mais difundido livro de Parasitologia Humana no Brasil é um médico veterinário, e dos bons!
Prosseguindo, faço a mim mesmo uma pergunta que poderia ser feita por outros: o conhecimento da parasitologia de peixes seria suficiente para a formação de profissionais da área de saúde, responsáveis pelo controle e tratamento das parasitoses humanas? E respondo: como nunca houve a divisão, no campo da Parasitologia, entre os que estudam estas diferentes qualidades de animal (lembrando que o homem não é vegetal, nem mineral), Carlos Chagas, que estudava tripanossomos entre barbeiros e macacos, contribuiu, significativamente, para elucidar o ciclo da Doença de Chagas no homem.
Além disso, muitos parasitólogos estudam grupos específicos de parasitos, como o gênero Plasmodium, quer seja ele de aves, lagartos ou humanos, ou algumas tênias, que acometem igualmente (em diferentes fases do ciclo), os crustáceos, os peixes e os humanos, como Dyphillobothrium latum, por exemplo. Segundo: a parasitologia, por razões como esta, estrutura-se de modo a considerar suas divisões de especialidade: a protozoologia, a helmintologia e a artropodologia.
Os congressos de parasitologia acolhem, nestas áreas, indistintamente, trabalhos envolvendo parasitos humanos e de outros animais. Terceiro, as disciplinas oferecidas no ciclo básico dos cursos da área de saúde não se aprofundam em questões como o tratamento das doenças parasitárias humanas, por exemplo, tendo como escopo, o estudo de aspectos morfológicos, biológicos, ecológicos e epidemiológicos dos parasitos, conhecimento que deve integrar a formação de qualquer biólogo em território nacional.
Poderia enumerar tantos e tantos outros bons argumentos contrários, mas façamos o oposto. Lembremos o que fundamenta a decisão contrária: 1) o argumento de que você não teria cursado a disciplina Parasitologia (com ênfase na Parasitologia Humana) em sua graduação. Tal decisão, fundada num achismo, numa pretensa exigência legal, não encontra amparo em qualquer parágrafo de nossa legislação; 2) o argumento técnico igualmente não se sustenta, a não ser no modelo universitário alemão do século XIX, na universidade dos tempos em que a especialidade, a formação do super-especialista, constituia o ideal de uma boa universidade.
Em tempos de interdisciplinaridade, de valorização da formação humanística, esse é outro argumento arcaico e tosco. As novas universidades, implantadas em cidades menores, no Brasil, estruturam-se conforme os mais modernos cânones da Pedagogia Universitária, valorizando o trabalho interdisciplinar, o diálogo entre diferentes áreas do saber e exigindo do docente o máximo de seus conhecimentos nas mais diferentes sub-áreas em que o mesmo possui formação.
Assim, se a lógica que preside esse novo modelo refuta a super-especialização e exige que um biólogo exercite seus conhecimentos em botânica, em genética, em citologia e ecologia, no modelo fundado no campo das tradições arcaicas e medievais um professor de geologia que é especialista em rochas ígneas não poderia lecionar assuntos referentes às rochas sedimentares, o especialista em insetos não poderia falar sobre aranhas. Estaríamos vivendo as mesmas condições do Insituto de Biologia da USP, de uns tempos atrás, a dispor de especialistas para ministrar uma única aula por semestre sobre o assunto em que é especialista (ou super-especialista)? Ou, salvo engano, no ICB da UFAM, professores que lecionam citologia, histologia, fisiologia e tantas outras gias, para cursos da área de saúde igualmente trabalham com peixes?
É, Ana, não pretendo nem reformar a cabeça das pessoas nem beber cicuta e, se a lógica que preside o funcionamento de nossa unidade é essa, me sinto um peixe fora d'água. Talvez devesse procurar meu igarapé.
Um beijo,
Welton Oda é professor do ICB/Ufam
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Welton, li com atenção sua carta endereçada à Professora Ana Lúcia Gomes. Mesmo antes de ver meu nome indiretamente citado, senti necessidade de dizer a você que compartilho em cada detalhe com seus argumentos. Independente da formação universitária que seguimos, se estudamos muito e com dedicação, podemos sim, sermos competentes em áreas distintas. Um de meus filhos, por exemplo, também é veterinário e, no entanto, é Presidente no Brasil e no Cone Sul da maior empresa de irrigação por gotejamento do mundo. Chegou lá depois de muito trabalhar e muito estudar. Acredito também que nossa colega também poderia ser professora de qualquer disciplina que desejasse, desde que se dedicasse ao estudo dela, mesmo que a disciplina não fizesse parte da grade curricular de seu curso de graduação. Mas existem colegiados ou bancas examinadoras que não entendem isso e tomam atitudes pouco construtivas. No meu entender, quem poderia não aceitar as aulas seriam os alunos da Professora e não um colegiado, pois conforme sempre digo, professor não ensina, desperta o interesse dos alunos em estudar. E um aluno entusiasmado, vai muito além do que se ensina numa sala de aula. Com um abraço e minha solidariedade,
David Neves - Doutor em Patologia Molecular pela Universidade de Brasília (2006).
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