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  06/03/2019 - por Juliana Fiuza



“Nova Previdência. É para todos. É melhor para o Brasil”
(slogan do governo federal)

“Vamos festejar a violência/e esquecer a nossa gente/ que trabalhou a vida inteira/ e agora não tem mais direito a nada”
(Renato Russo, em Perfeição)


 O governo federal anunciou, no seu segundo mês de gestão, a PEC 06/19, proposta sobre o que é hoje a agenda central do capital financeiro no mundo inteiro: a contrarreforma da Previdência. Em linhas gerais, a proposta se estrutura em três eixos: uma chamada “regra de transição”, a qual afeta o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras que possuem vínculo com algum regime previdenciário, inclusive os já aposentados; a generalização da capitalização para todos os futuros trabalhadores; e, por fim, a retirada da Previdência da Constituição.

Começando por este último eixo, é importante assinalar que a atual PEC em debate é só o início da contrarreforma. Ela torna constitucional a regulamentação da Previdência por leis complementares – tanto do regime geral, dos trabalhadores vinculados ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como dos regimes próprios dos trabalhadores do setor público -, facilitando que os governos possam permanentemente alterar a Previdência sem a necessidade de maioria qualificada nas votações legislativas. O reajuste automático dos benefícios também deixa de ser uma prerrogativa constitucional, o que poderá no futuro defasar até o mínimo seus valores reais.

As chamadas regras de transição têm como horizonte o aumento de alíquotas e a redução de direitos. Nos regimes próprios, a proposta é aumentar de forma escalonada as alíquotas por faixa salarial e permitir contribuições extraordinárias no caso de supostos déficits, inclusive de aposentados e pensionistas. Não trata, no entanto, da securitização das fontes previdenciárias dos estados, como no caso dos royalties do petróleo no Rio de Janeiro que, entregues ao mercado financeiro em um paraíso fiscal, já geraram com o pagamento de juros um rombo de 18 bilhões no fundo previdenciário público.

A proposta, ao mesmo tempo em que aumenta as alíquotas, reduz os direitos e benefícios ao elevar a idade mínima e o tempo de contribuição para 40 anos – para que o trabalhador, se conseguir viver até lá, tenha acesso à totalidade do valor da aposentadoria. Essa totalidade também passa a ser calculada pela média de todos os salários e não de forma integral. A integralidade já não existia para os trabalhadores que ingressaram no serviço público depois da contrarreforma do governo Lula em 2003, mas, pela atual proposta, serão contados todos os salários para o cálculo da média e não os 80% maiores, desconsiderando, assim, a grande diferença salarial por conta de direitos adquiridos por tempo, titulação e competência profissional no decorrer da vida laboral.

Para o Regime Geral, o aumento da idade mínima e do tempo de contribuição punem os trabalhadores que entram no mercado de trabalho e contribuem desde muito jovens, além de desconsiderar as diferenças entre as condições de vida e de trabalho tanto de homens e mulheres, como de trabalhadores urbanos e rurais.

É bom lembrar que a informalidade como traço fundamental do mercado de trabalho no Brasil, reforçada pela contrarreforma trabalhista do governo Temer, e os enormes índices de desemprego fazem com que boa parte da classe trabalhadora nunca tenha tido qualquer vínculo com a Previdência, ou o tenha perdido em vários momentos de sua vida. Em 2017, segundo o IBGE, pela primeira vez o número de trabalhadores na informalidade ultrapassou os que possuem carteira assinada, e, portanto, direitos previdenciários. O desemprego no início de 2019 voltou a crescer atingindo 12% da população, situação mais grave em treze capitais do Norte, Nordeste e Sudeste do país que alcançaram seus maiores índices de desocupação dos últimos 7 anos, acima da média nacional. Essa realidade é particularmente perversa para os trabalhadores rurais, dentre os quais 60% são informais e 78% começam a trabalhar antes dos 14 anos – o que, pelas regras da nova contrarreforma, os faria ter que contribuir para a Previdência por 20 anos se quiserem se aposentar.

Outro segmento particularmente afetado pela contrarreforma são as mulheres. Nas últimas décadas se multiplicou o número de famílias chefiadas por mulheres que moram sozinhas com seus filhos, bem como a participação das mulheres no mercado de trabalho. As desigualdades estruturais de gênero, fruto de uma cultura patriarcal, entretanto, fazem com que as tarefas domésticas continuem sendo realizadas por mulheres. Uma mulher empregada trabalha mais horas em casa do que um homem desempregado, no total uma média de 18,1 por semana. Ao mesmo tempo, as mulheres ganham em média 22% menos que os homens, situação que se agrava no caso das mulheres negras, que recebem 63% menos que homens brancos da mesma faixa etária e com o mesmo grau de escolaridade. Apesar dessas condições extremamente desiguais de trabalho, discute-se hoje no Brasil se idades de aposentadoria diferentes para homens e mulheres são justas. Apesar de manter uma diferença de idade entre homens e mulheres a PEC não alterou a idade mínima para aposentadoria dos homens, mas aumentou de 60 para 62 anos a aposentadoria por idade para as mulheres.

Além dos benefícios previdenciários a contrarreforma também propõe alterar o Benefício de Prestação Continuada, um benefício assistencial que atende idosos a partir de 65 em situação de extrema miséria. A proposta é reduzir esse benefício de um salário mínimo para 400 reais entre 60 e 70 anos e estabelecer, para além da renda de menos de um quarto do salário mínimo, o critério de limitação de patrimônio a 98 mil reais. Ou seja, é possível que a posse de uma moradia em condições precárias nas grandes cidades ou mesmo um terreno cultivado para sua subsistência na região rural impeça o recebimento mesmo dos parcos 400 reais. Pensando ainda na diferença entre homens e mulheres, 58% do total de idosos usuários do BPC são mulheres, que serão impactadas por essas novas regras propostas.

Por um lado, o objetivo da contrarreforma da Previdência é reduzir a participação dessa política no orçamento da União, dos estados e municípios, redução que permitirá um comprometimento ainda maior dos recursos do fundo público com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública e subsídios para o capital. Por outro lado, a contrarreforma pretende tornar obrigatória a capitalização da Previdência para o conjunto dos novos trabalhadores, públicos e privados.

A capitalização não é Previdência Social! A capitalização é um investimento de longo prazo e de alto risco. O Estado expropria parte dos salários dos trabalhadores para que este seja administrado pelos bancos, alimentando, assim, o circuito financeiro na compra e venda de ações, títulos e investimentos de toda ordem. Não há nenhuma garantia de que, ao fim de sua vida laboral, o trabalhar venha a receber dos bancos o dinheiro entregue, visto que isso depende das oscilações do mercado de capitais. Muitos países, como o Chile, que adotaram esse modelo hoje fazem seus trabalhadores sofrerem com benefícios irrisórios: 90,9% dos aposentados chilenos, por exemplo, recebem o equivalente a cerca de 694 reais, pouco mais da metade do salário mínimo daquele país. Entre os trabalhadores do setor privado são inúmeros os exemplos no Brasil de fundos de pensão que foram à falência, como o Aerus, fundo da Varig, ou estão passando sérias dificuldades, como o Postalis, fundo dos trabalhadores dos Correios. Pelas novas regras da PEC 06/19, sequer será necessária a constituição de um fundo de pensão fechado. Mesmo os trabalhadores do setor público poderão ser inscritos em fundos de previdência privada aberta administrados, direta e livremente, pelos bancos, com a garantia do Estado de apenas um salário mínimo independente das contribuições realizadas.

Há bastante tempo o debate sobre a Previdência Social se tornou para os ideólogos dominantes uma questão de ordem exclusivamente matemática, atuarial. Mascarando dados, negando as regras e fontes de financiamento previstas na Constituição de 1988 e omitindo a utilização dos fundos e fontes previdenciárias para outros fins, como no caso da Desvinculação das Receitas da União ou da securitização dos royalties de petróleo no estado do Rio de Janeiro, os governos desde de FHC tentam convencer os trabalhadores de que existe um déficit insolúvel que compromete a aposentadoria das novas gerações . Esse raciocínio, porém, é circular, tautológico, uma falácia cuja estulta lógica postula como único meio de garantia da Previdência Social justamente… o fim da Previdência Social!

A Previdência Social foi construída no início do século XX como uma auto-organização dos trabalhadores e trabalhadoras que solidariamente cotizavam em Caixas de Aposentadorias e Pensões com o objetivo de garantir, na morte, na velhice e nas enfermidades o seu sustento e o de suas famílias. Precisamos preservar essa memória, pois a Previdência Social não é senão uma forma de solidariedade. Em tempos de neofascismo ultraliberal, em que a des-solidarização social aparece como norma, a solidariedade pode servir como uma importante arma na estratégica luta por direitos, cujo horizonte é a construção de uma forma de sociabilidade na qual o lema será: “de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades”.

O princípio necessário a ser resgatado é o de que, para além das contas atuariais, o trabalho, mesmo em uma sociedade capitalista, pode e deve ser protegido justamente da sanha daqueles que se apresentam hoje como os portadores da única e dogmática solução para a garantia das aposentadorias, isto é, o fim dessas mesmas aposentadorias. Se, no futuro, a população será mais velha, tal fato é apenas um motivo para se defender que ela deverá ser mais protegida para que tenha melhores condições de vida. Defender a Previdência Social hoje é condição para a sobrevivência do conjunto dos trabalhadores: mulheres, homens, nossos pais, nossos filhos. Essa é a tarefa urgente de todas as nossas organizações.

Fonte: Esquerda online

*Mestre e Doutora em Serviço Social pelo PPGSS/UERJ, Especialista em Saúde e Serviço Social, Professora Adjunta da Faculdade de Serviço Social da UERJ e pesquisadora do GOPSS – Grupo de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social. Diretora da Associação de Docentes da UERJ (Asduerj) entre 2011 e 2015 e diretora do ANDES-SN entre 2016 e 2018.



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