A profusão de sinais de barbarização da vida que invade o nosso cotidiano todos os dias têm sido avassaladora. Karel Kosik, em sua magistral Dialética do Concreto (1976), tem uma bela e precisa caracterização sobre o cotidiano: “é um claro-escuro de verdade e engano”. Trata-se da distinção entre aparência e essência, esta última da qual essa aparência faz parte. Isto é, a aparência é o ponto de partida para o desvelar do fenômeno em seus elementos mais íntimos, em sua lógica interna, a ser reconstruída no nível do pensamento, com suas múltiplas determinações. Foi o que Marx fez ao nos revelar a lógica interna da produção e reprodução do capitalismo, destrinchando a mercadoria, quando percebeu que subjacente ao grande arsenal de produtos do trabalho humano, estava a exploração da força de trabalho, com a extração de mais-valor e uma relação social de dominação (alimentada pelo fetichismo e a reificação). E essa era a chave para compreender a lógica da totalidade da sociedade burguesa. Qual a conexão dessas observações teórico-metodológicas com a primeira frase deste texto?
Subjacente aos inúmeros elementos de barbarização da vida social que têm desfilado diante de nossos olhos nos noticiários e nas ruas, instituições, famílias, há um movimento da totalidade. Há um projeto devastador em curso e é preciso ir além de suas expressões fenomênicas, superficiais para derrotá-lo. O bolsonarismo é mais que um pesadelo que vai passar quando (e se) a classe trabalhadora acordar e forem realizadas novas eleições no país “restaurando a civilidade”, como se antes dele estivéssemos no melhor dos mundos. Essa é a saída que alguns setores à esquerda parecem aguardar, limitando-se à política institucional e tratando cada “boletim de ocorrência” diário de forma pontual, fustigando o governo e alguns de seus arautos mais nefastos, em especial por meio da importante série #Vaza Jato, que deixou nus Moro e Dallagnol. Lutando por Lula livre, como o único contrapeso mágico para todos os males, sem qualquer autocrítica do passado recente, onde vários desses elementos de barbarização da vida já estavam em curso, sem maiores e consistentes combates. Antes que as pedras venham, devo dizer que sou inteiramente a favor de Lula fora de um cárcere que teve exclusivas motivações golpistas e antidemocráticas, num processo judicial injusto e viciado. E penso que erodir sistematicamente este governo, que claramente tem pés de barro, e construir alternativas políticas e eleitorais de curto prazo seja também fundamental. Mas é insuficiente, tamanha a urgência de colocar um freio na devastação. É preciso aprofundar essas fissuras e alargá-las muito para sustar esse curso dos acontecimentos. E as ruas precisam falar mais alto do que já o tem feito.
O bolsonarismo expressa no Brasil um projeto de extrema direita com traços de fascismo que encontra parceiros e eco no mundo (articulações com Steve Bannon e outros), e está deixando marcas destrutivas indeléveis e cada vez mais profundas, a medida em que o tempo segue seu curso e são implementadas suas medidas reais – formais e informais. Inclusive, estas últimas, por meio de twiters, lives e etc, incentivam o que há de pior na sociedade brasileira, incrementando todo tipo de violência, como se dissessem aos monstros (supostamente) reprimidos que agora “liberou geral” e podem fazer o que quiserem: atear fogo nas florestas, invadir terras indígenas, matar mulheres e LGBTTs, e impor o poder das milícias nas comunidades, que matam uma pessoa a cada dois dias no Rio de Janeiro (O Globo, 01/09/2019), por exemplo. Enquanto isso, avançam a agenda econômica ultraneoliberal, que comentarei mais adiante, e a ofensiva contrarreforma intelectual e moral, tendo em vista solidificar as bases de legitimidade deste projeto que se funda no mais arraigado individualismo, na deslaicização do Estado e em um menu amplo de desvalores. Estou de acordo com artigo recente de Sonara Santos, onde discorre que a verborragia vociferante do bolsonarismo longe está de ser cortina de fumaça para as medidas econômicas ultraneoliberais, mas forma com elas a totalidade em movimento.
O que estamos chamando de devastação?
Vejamos alguns elementos fenomênicos nessa totalidade que se move numa direção perversa. A devastação se evidencia nas queimadas criminosas na Amazônia brasileira que tiveram aumento espantoso nas últimas semanas frente a anos anteriores como mostram os renegados (pelo próprio governo) dados do INPE. Iniciativas espúrias como o tal “Dia do Fogo”, construído por WhatsApp pelos autointitulados “homens de bem” – empresários, fazendeiros, lojistas e seus amigos grileiros – no sul do Pará, com certeza são sinais do clima de impunidade que se instalou no país desde janeiro de 2019. A grilagem de terras não é novidade no país e não encontrou os freios devidos antes. No entanto, a intensidade e a perversidade são inéditas, lançando uma nuvem de fuligem sobre a maior cidade da América do Sul, São Paulo, numa metáfora macabra dos maus presságios que estão sobre o Brasil. E junto com isso, vieram as ameaças aos povos indígenas, amplamente denunciadas em marchas em Brasília, pela circulação internacional de lideranças indígenas e de ativistas engajados na defesa do meio ambiente. Mas a devastação não é apenas da natureza, ela é sobretudo humana, pois o papel da maior floresta tropical do mundo na contenção do aquecimento global, que Ricardo Salles e seus cúmplices querem minimizar, é central. Por outro lado, é importante que se diga aos grandes monopólios e países imperialistas que o aquecimento global é responsabilidade principal deles, de sua emissão de gás carbônico (EUA e China na liderança), de uma relação predatória para com os recursos naturais. Os mesmos que cobram o cuidado brasileiro com a Amazônia são os que enviam ao Brasil containers de lixo. Ou seja, o planeta Terra aquece porque o capitalismo maduro e decadente o exaure. E encontra no governo brasileiro, com sua leniência e cumplicidade para com os piromaníacos, o melhor dos mundos.
Ainda mais diretamente devastadoras sobre homens e mulheres brasileiros(as) são as medidas implementadas pela programática ultraliberal no Brasil, desde o golpe de Estado de 2016, mas com alguns antecedentes em 2015, quando Dilma ainda tentou se credenciar como condottiere do ajuste fiscal, atacando as pensões e o seguro desemprego, e contingenciando recursos. Hoje sabemos que os predadores golpistas queriam muito mais: a Emenda Constitucional 95, a contrarreforma trabalhista e mais uma contrarreforma da previdência. Os resultados do recrudescimento, desde então, do ambiente de ajuste fiscal permanente que marca a redemocratização brasileira, como venho sustentando em alguns trabalhos acadêmicos, são destrutivos: dados recentes do IBGE mostram que como um efeito da contrarreforma trabalhista de Temer, há 36 milhões de trabalhadores vivendo em condições precárias de trabalho e com baixos rendimentos, já que a renda média dos trabalhadores brasileiros caiu de R$ 2.311/mês para R$ 2.286/mês. A precarização e a informalidade marcam um mundo do trabalho sem direitos. Essa ausência de direitos tende a aumentar quando se propõe uma contrarreforma da previdência que obriga a quarenta anos de contribuição para receber uma aposentadoria no teto da previdência pública, como prevê a proposta aprovada pelos “civilizados” deputados, sob a liderança daquele que vem se cacifando como referência para a burguesia “civilizada” no país, Rodrigo Maia. E qual é o sentido da constituição deste mundo do trabalho precário e sem direitos? É o modus operandi do capital em sua caça apaixonada do valor, cuja acumulação depende da subsunção do trabalho. É capitalismo em estado puro, exaurindo a força de trabalho como forma de recompor suas taxas de lucros.
Estamos diante de um gritante empobrecimento da população – cuja explicação remete à lei geral da acumulação, em Marx. Seus efeitos na sociabilidade são dilacerantes: o crescimento da população de rua, da violência difusa nas ruas como estratégia desesperada de sobrevivência, o crescimento do crime organizado pelo tráfico e pelas milícias, “empregando” jovens sem perspectiva e no desalento. Esses mesmos jovens são estimulados para as saídas individuais e diante das frustrações de um mercado de trabalho e de consumo que não se abre para todas e todos, partem para saídas imediatistas e que colocam a sua vida e a da população em geral em risco. A contraface tem sido um brutal crescimento da face penal do Estado, com o uso da violência desmedida e deliberada sobre as populações pobres e segregadas, em especial jovens e negras, reproduzindo o racismo estrutural brasileiro. O número de mortes pela polícia, de mortes em geral no contexto da violência endêmica e o encarceramento crescente subscrevem a imensa devastação humana. Fora as “balas perdidas”, temos as perdas inúteis de vidas, produzidas por políticas de segurança pública fruto do senso comum difundido pelo projeto em curso no país, de que “bandido bom é bandido morto”. Tais “violência que vem de cima” e “gesta da segurança pública”, lembrando Loic Wacquant, promovem um bruto enfrentamento cotidiano, com direito a tiros de helicóptero, e a manobras e demonstrações viris estúpidas por parte de governantes (Witzel e Dória, por exemplo). Com isso tornam a vida em comunidades inteiras um verdadeiro inferno, do que se aproveitam muito os novos apóstolos da salvação, o pentecostalismo autônomo, que transforma tudo numa questão individual, de comportamento, de contrição. Já que a vida na Terra é um inferno, que se busque um passaporte para o céu. O documento carimbado para a salvação é evidentemente caro e os sinais de enriquecimento desses setores com base na exploração da fé são inúmeros e não encontraram freios consistentes nas últimas décadas. O resultado é que o bolsonarismo cria raízes aí neste espaço dos trabalhadores pobres, que ganham entre 2 e 5 salários mínimos e se enganam com os falsos acenos de segurança na terra e no céu. Trabalhadores que lutam todos os dias pela sua sobrevivência mais imediata, que majoritariamente estão desorganizados e com os quais é decisivo dialogar para virar esse jogo.
Um outro ângulo da devastação foi a aprovação da Emenda Constitucional 95 ainda no governo Temer. Este foi um elemento central do Novo Regime Fiscal ultraneoliberal, cujas consequências estão na draconiana contrarreforma da previdência, nos ataques recentes à educação e às políticas sociais, sob o discurso de que “não há dinheiro para nada”. No caso da educação, tais ataques fazem parte da agenda da contrarreforma do Estado combinando sua face econômica à intelectual e moral, no sentido de tornar o país mais dependente e heterônomo, esvaziando a pesquisa; e no mesmo passo, asfixiar a crítica social produzida nas universidades públicas, tendo em vista – pela força – forjar a adesão ao projeto Future-se. Este último, proposto pelo grosseiro Weintraub, traz a grande novidade (SIC!) das Organizações Sociais (OS) na gestão de universidades, o que já está posto desde o Plano Diretor da Reforma do Estado de 1995, mas que vem acompanhadas das pitadas destrutivas do presente: alienar patrimônio público para constituir um fundo de financiamento, por exemplo. Sobre as OS, já há inúmeros trabalhos sobre a área da saúde que mostram que estas são verdadeiras gambiarras de recursos públicos para o setor privado sem necessariamente melhorar a eficiência de serviços. No mesmo momento em que o governo faz essa proposta, o orçamento para 2020 promete diminuir pela metade os recursos da CAPES e equalizar os orçamentos das IFES desconsiderando suas abissais diferenças. Os estudantes e a comunidade universitária já realizaram três grandes jornadas de lutas, mas não houve recuo por parte do governo. Enquanto parece não haver recursos para nada e a culpa recai sobre os direitos à previdência, o problema da dívida pública permanece intocado e as instituições financeiras realizam tranquilamente sua punção de fundo público todos os anos. Chegaria a ser cômica, se não fosse trágica, a leitura recente dos jornais sobre o orçamento de 2020, onde a mistificação da falta de recursos é reproduzida sem qualquer pudor. E assim vão sendo justificados os elementos ultraneoliberais da programática em curso: a venda de 17 estatais, a contrarreforma da previdência. Quem são os grandes beneficiários? O imperialismo – com favorecimento direto aos EUA, tratados com pompa e circunstância bajuladora pelo presidente, seus filhos e o chanceler – que busca nichos de valorização em tempos em que se anuncia uma nova crise endêmica e global. As instituições financeiras, credoras dos títulos da dívida brasileira, em especial a dívida interna, já que os fundos pensão, que a contrarreforma da previdência busca favorecer, são aqui os principais credores. E seus prepostos instalados no Planalto e no superministério da Economia. De outro lado tem-se uma burguesia brasileira cujo caráter antinacional, antipúblico e antidemocrático – segundo as análises de pensadores como Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Rui Mauro Marini – está ainda mais evidente, bastando observar as últimas declarações e movimentos da FIESP (o que inclui assessoria de militares).
Poderíamos listar outros elementos devastadores: a censura no campo da arte (cinema, teatro); o machismo como um componente central além do já referido racismo estrutural; a militarização acelerada das instituições; o desmonte de estruturas de controle democrático; a intervenção em escolas e universidades desrespeitando eleições democráticas de reitores e diretores.
Sobre urgência
Para conter uma ofensiva em tantas frentes entrelaçadas, é urgente uma resposta que envolva economia, política, cultura; exploração e opressões. É fundamental continuar fustigando este governo tendo em vista aprofundar sua queda livre, suas fissuras e contradições, o que já aparece nas enquetes de opinião de várias fontes nas últimas semanas. A agenda de lutas não pode retroceder e apostar num futuro meramente eleitoral. Ela precisa se fazer presente e contundente aqui e agora, nas ruas, nos meios virtuais, nas universidades, nos debates. Cada espaço de disputa se torna central como espaço educativo para a construção de uma contra hegemonia.
Precisamos de uma esquerda anticapitalista à altura das requisições deste tempo de crise e decadência desta forma de organização da vida e que nos traz a morte, a necropolítica: o capitalismo maduro e decadente. Uma esquerda capaz de realizar uma frente única de lutas contra os retrocessos, contra a hipoteca do futuro. Uma esquerda que possa desencadear uma ampla campanha de mobilização popular demonstrando a devastação em curso e que apenas as ruas podem contê-la, já que as instituições da democracia blindada (Felipe Demier, 2017) parecem não ser capazes de qualquer passo que imponha freios à barbárie. Na verdade, a “direita esclarecida” surfa nas ondas ultraneoliberais, favorecendo-se delas em vários aspectos e tentando controlar os “excessos”, já que não conseguiram emplacar eleitoralmente seus desgastados candidatos, seu “museu de grandes novidades”, abrindo uma avenida para esse discurso da “nova política”, tão decrépita, nepotista e violenta. O artigo mais recente de FHC na imprensa mostra isso: o incômodo com o monstro que ajudaram a criar com o Golpe de Estado de 2016 e a necessidade de um basta à incontinência verbal do presidente da república (em minúsculas mesmo, inspirada por Mauro Iasi), como se esse fosse o único problema. Eles tentam acumular para 2022. De nossa parte, fomos insuficientes quando não realizamos uma greve geral no dia da votação da contrarreforma da previdência. O movimento sindical e social patina nas suas divisões internas e frente a desafios estruturais reais após anos de neoliberalismo. A superação, com grandeza e coragem, deste estado de coisas no campo da classe trabalhadora e de seus instrumentos e organizações, para um enfrentamento contundente e não exclusivamente eleitoral da devastação é, quiçá, a maior das urgências. Neste mesmo diapasão urge a afirmação de uma alternativa de conjunto, de um programa de transição ao socialismo, posto que o capitalismo há muito só tem a ofertar a destruição de muitos para o beneplácito de pouquíssimos.
Publicado originalmente em esquerdaonline.com.br no dia 2 de setembro de 2019 |