Nossas considerações iniciais nos remetem ao entendimento que é fundamental refletir sobre os projetos educacionais que norteiam a Política Educacional para “tornar transparente para os próprios atores a dependência de seu agir e de suas convicções teóricas, em relação ao contexto de seu mundo objetivo que, longe de ser apenas determinado por eles, orienta sua própria vida profissional” (FLICKINGER, 1998, p.13).
Assim sendo, a análise dos contextos político, social, cultural e econômico é fundamental para refletir sobre os caminhos da Educação Brasileira na atualidade. Quais lógicas permeiam a ação dos governantes que materializam reformas que trazem para o povo brasileiro prejuízos incalculáveis?
Partimos do entendimento que a ação humana no mundo o modifica, transformando também as relações sociais e os próprios indivíduos, que constroem no processo suas identidades e suas culturas. A relação trabalho/educação é o ponto de partida para a compreensão do momento histórico vivenciado atualmente.
Reestruturação Produtiva e Reformas
O modo de produção capitalista traz em sua essência a produção de mercadorias para obtenção do lucro, com isto a acumulação de capital se processa e na medida em que o capitalista se apropria do excedente produzido pelo trabalho a riqueza se concentra, deixando os trabalhadores expropriados dos produtos de seu próprio fazer, aumentando de um lado a pobreza e de outro a riqueza, instituindo crises (BEVILAQUA, 2017).
Ciclicamente ocorre diminuição da produtividade, visto que o ciclo do capital está estrangulado, sendo necessário processos que reestruturem a forma de produzir, sem, no entanto, modificar a lógica do próprio sistema (MOURÃO 2006). Assim, os mundos do trabalho se reestruturam o que implica a modificação de todas as instituições, inclusive o Estado.
A crise da produtividade capitalista que ocorre na década de 1970 apontou mundialmente reformas para que a acumulação capitalista se mantivesse. Deste modo, o Estado do Bem Estar Social é substituído pela concepção do Estado Mínimo, que propugna que o aparelho estatal está inchado, sendo necessário reformas para superar a crise.
São indicadas as reformas da Previdência, Administrativa, Tributária, Trabalhista, Sindical, Educacional e Política. Estas vêm ocorrendo, apesar da resistência da sociedade civil organizada, modificando consideravelmente a mesma.
Gentille e Suárez (2004, p. 26) apontam que na esfera educacional as reformas “desenvolvem um conjunto de valores e modelos organizacionais e de gestão, modalidades sobre as quais foram construídas suas identidades e nos quais fundaram sua ação coletiva”. Isto implica em uma nova regulação das relações educacionais que, segundo os referidos autores, altera a carreira, o salário, implementa incentivos por desempenho, descentraliza as negociações e modifica as políticas curriculares.
Esses processos ocorrem sob intenso conflito, que ora avançam para processos democráticos, ora caminham para a acomodação na esfera neoliberal. Os conflitos são estudados levando em consideração o contexto e são considerados como processos de resistência democrática. São muitas as reformas educacionais, mas nos deteremos na Reforma do Ensino Médio e na criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Reforma do Ensino Médio: aprofundamento da escola dual
Historicamente há uma disputa acerca dos processos formativos implementados na escola. De um lado, há a defesa que a formação humana deve ser omnilateral, ou seja, é a formação que constrói processos de humanização, apontando para uma educação integral que forme homens e mulheres para a vida atendendo todos os aspectos relativos ao desenvolvimento humano. Por outro lado, há a defesa que a escola deve preparar para o mercado.
O ANDES-SN explicita que o primeiro ato que institui a formação escolar para o mercado data do Estado Novo – Reforma Gustavo Capanema, que cria o Senai e o Sesi, apontando que esta formação deveria ser rápida e objetiva visto que o processo de industrialização necessitava de mão de obra que pudesse adentrar no mercado de trabalho com o mínimo de formação (ANDES-SN, 2017). Para os filhos dos capitalistas, os cursos científicos ou clássicos preparavam para a Universidade. Para os pobres, restava o ensino profissional aligeirado, com ensinamentos exclusivamente técnicos.
A Ditadura vai consagrar a dualidade com a lei 5.692/72 que propugna a formação para o mundo do trabalho. No entanto, as escolas particulares não se organizaram como preconizava a lei. As escolas públicas tinham que organizar o ensino, levando em consideração os processos de educação para o trabalho. O movimento organizado lutava por processos democráticos e criticavam a teoria do capital humano que sustentava a lei. A luta era por uma educação pública e democrática, na qual a formação humana deveria ser integral. A organização do ensino de 2º grau é mudada em 1982 com a lei 7.044.
Outro golpe na Educação é evidenciado no processo de aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Quando o Fórum em defesa da Escola Pública encaminhava discussão mais ampla sobre as normativas, Fernando Henrique Cardoso direciona ao Senado um Projeto de Lei pensado por Darcy Ribeiro, que é aprovado, colocando por terra toda a discussão efetiva pelos movimentos sociais organizados. A lei 9.394/96 acentua a escola dual quando separa o Ensino Médio do ensino profissional.
Todo o ensino profissional passa a ser normatizado por decreto. FHC institui o ensino técnico como etapa formativa (PEREIRA; PASSOS, 2011) por meio do decreto 2.208/97. Segundo Kuenzer (1997), a racionalidade financeira vai embasá-lo, havendo um apartamento entre educação geral e profissional. Os pesquisadores ligados à área se contrapõe a essa formulação e, no governo Lula, abre-se a possibilidade de articulação entre o Ensino Médio e o ensino profissional por meio do decreto 5.154/2004 que institui o Ensino Médio integrado.
Essas formulações normativas carregadas de conflito são mantidas, sendo que a forma integrada – Ensino Médio e ensino profissional – vai ser introduzida na lei 11.741/2008 (nota 1). Pereira e Passos (2011, p. 10) afirmam que a acomodação das diferentes concepções e interesses políticos sobre a educação profissional média
[...] repercute sobre o delineamento da política para essa modalidade, dificultando a criação de uma identidade para a educação profissional e de um verdadeiro sentido para a política de integração. Além disso, tem implicações sobre a oferta do Ensino Médio, que passa a assumir mais de uma possibilidade de oferta, restabelecendo dualidade na educação básica.
Discutindo a Reforma do Ensino Médio
Os conflitos deixaram em aberto a possibilidade de reformas no Ensino Médio, visto que a dualidade está expressa na educação básica e há diminuição das matrículas neste grau de ensino, conforme demonstra Kuenzer (2011). Os argumentos em favor da Reforma do Ensino Médio são embasados no alto índice de evasão e repetência e também no baixo desempenho do alunato em disciplinas como Português e Matemática. Os reformadores afirmam que o Ensino Médio tem que ser mais atrativo para os jovens.
Rebatendo os argumentos que motivaram as reformas, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) aponta que os motivos da evasão e repetência estão ancorados também na sociedade, visto que os jovens mais pobres têm que trabalhar para contribuir com o orçamento familiar. Além disto, as escolas públicas estão sucateadas por falta de financiamento que acentuam os problemas estruturais. Enfatiza a falta de articulação com outras políticas sociais (CNTE, 2018).
O argumento que a reforma traz mudanças benéficas para a escola, pois atenderá as motivações dos jovens é um argumento insustentável, visto que para atender os interesses da juventude é fundamental condições materiais que proporcionem inserção na cultura letrada e o conhecimento dos bens culturais construídos pela humanidade. A democratização do acesso e o financiamento para que haja expressão cultural são fundamentais para mudar as expectativas dos jovens.
Outra falácia é que o novo Ensino Médio permitirá a entrada rápida no mercado de trabalho. Enfatizamos que o problema do mercado de trabalho não é somente a pouca formação dos jovens, mas, sobretudo, a forma de organização do sistema capitalista, que, por seu estrangulamento, abre os mercados para os países desenvolvidos limitando a abertura de trabalho. Resgatamos que o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo limita o desenvolvimento dos países dependentes.
Os reformadores afirmam que há um excesso de disciplinas na educação básica e, por este motivo, não há aprendizado em disciplinas importantes como o Português e a Matemática. Os educadores vêm discutindo a integração entre os conteúdos que são ensinados. A CNTE aponta que os conteúdos devem dialogar com a vida do aluno. Para a CNTE (2018, p. 9), esta proposição de menos conteúdo para a formação dos jovens atingirá, sobretudo, os estudantes das escolas públicas e, além disto, põe em risco “a formação humanística cidadã” e compromete a oportunidade de acesso à Universidade. A redução das disciplinas atinge diretamente os profissionais da educação quando diminui a possibilidade de contratações.
Destacamos que a Reforma do Ensino Médio atropela a lei 10.639/03 (nota 2), pois interfere nos programas de ação afirmativa, impondo uma ideia única aos processos formativos, o que é perigoso, já que o pensamento único não possibilita a construção da cidadania.
A lei ainda faz alusão a processos privativos da parte flexível do currículo e a possibilidade de contratação de professores de “notório saber” para a formação técnica e profissional. Com a aprovação da Reforma Trabalhista, o trabalho pode ser intermitente (nota 3) e consolida-se o banco de horas (nota 4), normas que rompem com a estabilidade no emprego e possibilitam maior exploração do trabalhador. A Lei da Terceirização permite a terceirização da atividade fim. Com isto, a obrigatoriedade dos concursos públicos cai por terra, havendo possibilidade de criação de empresas que orquestrem a forma de admissão dos profissionais em educação, rompendo com a possibilidade de vínculo empregatício e precarizando cada vez mais o trabalho e a educação.
No que se refere aos itinerários formativos como opção do estudante é uma proposta que compromete a inclusão no Ensino Médio, visto que o pouco investimento na educação limita o oferecimento de vários itinerários. As escolas terão dificuldades financeiras de instaurar várias frentes de ensino.
A Base Nacional Comum Curricular
A BNCC regulamenta quais as aprendizagens são fundamentais para serem trabalhadas nas escolas brasileiras, norteia os currículos escolares. Se baseia na teoria das competências que, segundo Mourão (2006), incorpora à noção de qualificação do conhecimento apreendido pelo saber fazer, modificando o estatuto das qualificações, principalmente relacionados aos processos que normatizam as relações de trabalho. Com isto, há concretamente quebra de direitos historicamente conquistados, visto que aponta para relações de trabalho individuais.
A ênfase é centrada em aspectos da personalidade em detrimento de qualificações mais técnicas, decorre daí que a formação é mais geral, sendo que a formação técnica fica a cargo de cada empresa (MOURÃO, 2006). Ricardo (2010, p. 4) assevera que
isso desloca a responsabilidade da formação para o sujeito. A emergência da noção de competências nessa perspectiva e a não percepção da qualificação como um processo histórico e social enfraquecem as conquistas coletivas e põem em conflito interesses pessoais e coletivos, liberando o Estado de regulamentações, uma vez que se fortalecem as relações entre empregado e empresa.
É preocupação dos educadores que a BNCC aponte somente para a construção de performances que se adequem aos testes avaliativos nacionais e internacionais, que padronizam os processos de formação, cerceando concepções formativas mais abrangentes. Com isso, os processos de privatização se impõem, visto que a parte flexível do currículo pode ser oferecida de diferentes formas, mediante diversos convênios privados.
Chamando para a luta
A Reforma do Ensino Médio faz parte de um conjunto de políticas que objetivam adequar o Brasil às exigências da mundialização do capital. Assim sendo, é urgente uma luta mais intensiva para barrar essas ações e, para isto, é preciso resgatar a discussão a respeito do Projeto de Sociedade que o movimento progressista defende. Que sociedade queremos construir? Que tipo de homem/mulher queremos formar?
A dicotomia público e privado está contida na Reforma, havendo uma ampla propaganda ideológica que desmoraliza o público para potencializar a entrada do capital na esfera educacional. Nesta perspectiva, a luta pela escola pública tem que ser redobrada, mostrando que o desmonte e desmoralização da Educação Pública é um projeto que beneficia o grande capital.
Os donos do poder se apropriaram das bandeiras de ordem dos movimentos e ao fazê-lo implementaram processos polissêmicos que confundem os trabalhadores. Deste modo, é importante resgatar nos movimentos sociais processos formativos que apontem a autonomia brasileira, desvelando o que está por trás das propostas de Reformas. O movimento organizado tem que construir novas bandeiras de luta e uma bandeira que deveria estar na ordem do dia é a auditoria da dívida pública. Essa bandeira mostraria à população que o Brasil está perdendo sua soberania e que, ao contrário que os governantes apregoam, o Brasil está sendo loteado. É preciso lutar contra isto, edificando processos democráticos e participativos, que levem à construção de uma outra sociedade, mais humana e democrática.
Notas
1: Altera dispositivos da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para redimensionar, institucionalizar e integrar as ações da educação profissional técnica de nível médio, da educação de jovens e adultos e da educação profissional e tecnológica;
2: Estabelece a obrigatoriedade do ensino de história da África e das culturas africana e afro-brasileira no currículo da educação básica;
3: O trabalhador poderá ser pago por período trabalhado, recebendo pelas horas ou diária. Ele terá direito a férias, FGTS, previdência e 13º salário proporcionais. No contrato deverá estar estabelecido o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor do salário mínimo por hora ou à remuneração dos demais empregados que exerçam a mesma função;
4: O excesso de horas em um dia de trabalho pode ser compensado em outro dia, desde que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas. Há também um limite de 10 horas diárias.
Referências Bibliográficas
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