O direito fundamental de nós mulheres decidirmos sobre o nosso próprio corpo representa um afrontamento à sociedade patriarcal, racista e capitalista, que opera de forma orgânica e efetiva para aprofundar e dar continuidade ao processo histórico de dominação, opressão e exploração das mulheres. O controle do corpo das mulheres é um dos mecanismos utilizados não só por pessoas, mas, sobretudo por instituições que ilegitimamente se consideram tutoras e capazes de decidir sobre o corpo das mulheres.
Esse sistema de dominação, porém, não ocorre sem resistência, sem rebeldia e sem a auto-organização e a luta das mulheres por justiça, direitos e liberdade ao longo da História. Movimentos feministas, movimentos de mulheres e organizações aliadas transformam a violação dos direitos das mulheres em bandeiras de luta. A autonomia sobre seu próprio corpo e o direito ao aborto legal e seguro representam algumas dessas bandeiras.
Em março de 2017 o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Anis Instituto Bioética deram entrada no Supremo Tribunal Federal (STF) à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 442, questionando a inconstitucionalidade dos art. 124 e 126 do Código Penal Brasileiro que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez. A argumentação da ADPF 442 toma como referência dados da realidade sobre a interrupção voluntária da gravidez e os princípios fundamentais da pessoa humana previstos na Constituição Federal de 1988 - dignidade, cidadania e não discriminação -, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar.
Após um ano de tramitação no STF, em março de 2018, a ministra Rosa Weber convocou a audiência pública que apreciará a referida ação agora no início de agosto. Caso esta ação seja julgada procedente, o aborto deixa de ser crime e as mulheres poderão interromper voluntariamente a gravidez até a 12ª semana. Atualmente no Brasil, a interrupção da gravidez é permitida apenas quando a mulher é vítima de estupro, quando ela corre risco de morte e em caso de gravidez de feto anencéfalo. Além de limitada, a atual legislação não assegura que as mulheres tenham seu direito garantido e que recebam atendimento de qualidade mesmo quando se trata do aborto legal. Parte das dificuldades enfrentadas pelas mulheres na hora de fazer o aborto legal são decorrentes de um Estado que oficialmente tem a natureza laica, mas que na prática é pautado por valores e práticas religiosos fundamentalistas que condenam as mulheres que pensam, desejam e necessitam abortar.
A Frente Nacional Pelo Fim da Criminalização de Mulheres e Pela Legalização do Aborto é um dos principais sujeitos políticos desta luta no Brasil, que reúne uma lista de pessoas e de organizações de mulheres e mistas comprometidas com os direitos das mulheres, inclusive o PSOL e o Anis. A Frente, entre diversas iniciativas, tem contribuído para disseminar e aprofundar o debate com diversos segmentos sociais, fazendo enfrentamento ao avanço do conservadorismo e da direita racista neoliberal.
Para os movimentos feministas como a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), que também integra a Frente, é imprescindível ampliar o debate com as mulheres, como estratégia construir força política que influencie a sociedade a respeitar e apoiar o direito das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo, como garantir que além da descriminalização, o aborto seja legalizado.
Não basta descriminalizar o aborto. Descriminalizar significa que em caso de interrupção voluntária da gravidez, a mulher não poderá ser presa. Legalizar o aborto significa que o Estado precisa criar uma política pública e garantir atendimento de saúde digno às mulheres em situação de abortamento, devendo ainda assegurar educação sexual para que as mulheres possam decidir e ter acesso a métodos contraceptivos.
Avançar nesta luta pressupõe superar o preconceito, o caráter moralista e o receio de falar sobre aborto. Descortinar o tema da descriminalização e legalização do aborto é tarefa política urgente. Isso exige conhecimento da realidade, reflexão lúcida e compromisso ético.
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2016 pela Universidade de Brasília e pela Anis Instituto de Bioética, nos fornece dados sobre o perfil das mulheres que abortam no Brasil. Segundo a PNA, predominantemente as mulheres que abortam estão na faixa etária de 18 a 39 anos, já tem filhas/os (67%), são oriundas das zonas urbanas (82,3%), se auto declararam católicas, protestantes, evangélicas ou espírita (88%). As maiores taxas de aborto referem-se a mulheres negras, indígenas, com baixa escolaridade, oriundas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Nem toda mulher passa pela experiência da gravidez. Parte das mulheres que engravidam numa circunstância indesejada optam por abortar. Mas existe uma longa distância entre esta decisão e a garantia do direito de decidir sobre o seu corpo. E tem aquelas que a despeito da sociedade e do Estado, abortam, além da legalidade, de forma segura ou não. Isto é fato! Engana-se quem pensa que toda mulher favorável à legalização do aborto, se um dia ela engravidar, irá abortar. Engana-se também quem pensa que todas mulheres que decidem abortar são militantes feministas. Muitas vezes, a maioria das mulheres que interromperam voluntariamente a gravidez jamais tinha pensado nesta possibilidade anteriormente.
Para as mulheres ricas, brancas e de classe média, abortar é algo relativamente simples e tranquilo. Suas condições financeiras permitem acesso a alguns serviços de saúde privados. Para as mulheres empobrecidas e negras, esta experiência é permeada de medo, dor, sofrimento e injustiça. Sem condições de pagar um atendimento digno, acabam recorrendo a procedimentos que colocam suas vidas em risco e quando há um agravamento da situação, recorre ao Sistema de Saúde Público - SUS, quando muitas vezes é julgada e maltratada como punição pelo seu ato.
Recentemente os movimentos feministas latino-americanos vibraram com a aprovação da legalização do aborto na Câmara Federal da Argentina, que ainda aguarda a aprovação do Senado. Mesmo assim, essa experiência representa um avanço, nos inspira e nos instiga a permanecermos em luta, construindo estratégias de diálogo e pressão aos governos, aprofundando o debate na sociedade e construindo alianças difíceis de se consolidarem fora dos movimentos feministas. Estaremos participando e de olho na audiência pública do STF, buscando avançar na descriminalização e acumular força política para seguir lutando pela legalização do aborto.
* Feminista negra, integrante do Instituto Negra do Ceará (Inegra) e do Fórum Cearense de Mulheres (FCM). |