Data: 22/06/2018
A questão das más condutas na área da ciência emergiu nos EUA, anos 80. Início da última década do século passado, o tema chega ao Journal of Chemical Education. Um dos autores mais envolvidos, Jeffrey Kovac, lança o livro The Ethical Chemist – Professionalism and Ethics in Science em 2004. Do próprio subtítulo do livro se depreende que seu alcance e campo de interesse ultrapassam os limites da Química. À primeira leitura, pode parecer que o autor esgota o assunto, pois vai muito além da questão referente à honestidade no relato e discussão de dados experimentais/laboratoriais e à questão do plágio.
No ano de 2007 implantei no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) a disciplina de pós-graduação Ética para o Profissional de Química, que teve por texto principal a obra de Kovac. Em consequência de escândalos ocorridos em universidades – escândalos noticiados pela grande imprensa – a Sociedade Brasileira de Química, sediada no IQ, e o próprio IQ se viram necessitados de inserir na ordem do dia debates referentes à ética acadêmica. As ponderações, porém, praticamente se restringiram à invenção de dados e ao plágio.
Na disciplina de Ética, com a participação ativa dos alunos, logo surgiu a percepção de que as atividades do cientista não se esgotam na pesquisa e publicação de artigos científicos (papers, como mais recentemente a altivez acadêmica prefere chamar). Tendo por palco principal a universidade, os cientistas se veem na contingência de preencher cargos administrativos e de empreender ações políticas. Consequentemente, a vida acadêmica é afetada por fatores, além dos já mencionados, e a questão ética se torna mais complexa. Aspecto adicional à complexidade se origina em que os atores não se reduzem aos professores-cientistas, alunos, pesquisadores e meios de publicação: há uma relação/interferência com a sociedade, setor produtivo e até com a política, inclusive partidária, predominante no Estado e no País.
Complexidade a ser debatida em partes, no presente nos limitamos a uma questão emergida nos comentários dos participantes da disciplina: o exercício do poder nas diferentes instâncias da universidade. O problema se manifesta de duas maneiras: (1) a metamorfose kafkiana pela qual o amável candidato em busca de votos se transforma num administrador autoritário e (2) o exercício do poder mesquinho.
É de se supor que os administradores eleitos pelos membros da comunidade representem os interesses de suas unidades junto ao poder superior e não o contrário. Um diretor de unidade deve agir em função dos interesses da unidade que o elegeu e não apenas representar os interesses da Reitoria, do reitor, junto a sua unidade. Do mesmo modo, o reitor deve atuar em benefício da Universidade em vez de fazer o papel de mero interventor do governo, cujos interesses podem ser puramente políticos daquele momento. Um exemplo real, o aumento do número de vagas, por motivações eleitoreiras, sem uma contrapartida da concessão de verbas adicionais. Aceita a pressão pelo reitor, passa a ser aceita, na cadeia de interesses concatenados, pelos diretores que induzirão as congregações à aprovação. Onera-se a unidade se não houver contrapartida financeira ou contratações adicionais. Por ser política a demanda, uma pesquisa de mercado ou de necessidades é omitida. Isto, em detrimento da qualidade de ensino e das atividades científicas dos docentes – já acossados pelo crescente produtivismo -, cuja carga aumenta.
Um reitor ético defenderá os interesses da instituição que o elegeu. Em particular, defenderá o ensino de qualidade e gratuito. Ter se formado ele próprio numa universidade pública, gratuita, reforça sua obrigação moral. Não conivente, nem passivo, mas atuante, deverá ser contra as pressões privatizantes, que representam interesses comerciais de grupelhos e não os da sociedade e da academia. Deverá também resistir às pressões contra a gratuidade. Deverá se orientar pelas condições produtivas e socioeconômicas de seu próprio país, em lugar de se encantar com modelos estrangeiros que – talvez – funcionem bem em seus respectivos países, não necessariamente aqui.
Um reitor ético defenderá os interesses da instituição que o elegeu. Em particular, defenderá o ensino de qualidade e gratuito. Ter se formado ele próprio numa universidade pública, gratuita, reforça sua obrigação moral.
Um reitor ético manterá colaboração cordial com sua instituição e, por que não, também com os sindicatos que representam os docentes e os trabalhadores da unidade, visto que “teoricamente” todos têm os mesmos objetivos: o bom funcionamento, o sucesso da instituição e a contribuição à sociedade em todos os sentidos (o que inclui, obviamente, o setor produtivo). Zelando pela indispensável liberdade acadêmica, base da criatividade e da inovação, agirá impedindo estúpidas pressões burocráticas sobre os docentes/pesquisadores. Esse reitor transitará tranquilamente entre professores e outros servidores e será até aplaudido – em vez de temer vaias.
Mantidas as diferenças do cargo, semelhantes considerações podem ser feitas no caso de diretores de unidades e chefes de departamento. O cargo não deveria se reduzir a um degrau na ascensão pessoal. Ser eleito não deveria ser apenas o beijo milagroso, inverso ao do conto infantil, com o gentil príncipe candidato se transformando num sapo autocrata, como frequentemente ocorre. É nessa situação que surge o exercício do poder mesquinho. Poder mesquinho, que se manifesta em imposições desnecessárias, vaidosas manifestações de poder. Acabar com o cafezinho (quantas ideias científicas e educacionais nascem nas conversas descontraídas na copa!) ou proibir em festas de Natal convidar parentes. Não será um exercício de poder muito mais inteligente desenvolver em colaboração com toda a comunidade o plano estratégico de sua instituição? Plano de que muitas gestões, se não a maioria, carecem/careceram. São impressionantes a contribuição positiva e a criatividade de funcionários que trabalham com satisfação e com alegria, numa instituição em que a direção consegue implantar, manter uma atmosfera de cordialidade.
Sem ter esgotado o assunto, me recordo de um evento narrado pelo professor Simão Mathias, primeiro diretor do então recém-formado Instituto de Química. Não me lembro dos nomes, mas se tratava de duas eminências de uma universidade alemã que num dia chuvoso chegaram juntas à entrada estreita de sua faculdade. Tendo se trombado na porta, sem quererem um dar prioridade ao outro, se agrediram com os guarda-chuvas. Algum tempo depois, o aluno de um deles precisou de um reagente químico que não tinham no laboratório. Seu orientador, da troca de guarda-chuvadas, mandou-o pedir emprestado do contendedor. Este, desconsiderando as ofensas recíprocas, não hesitou em emprestar a substância. O professor Mathias me dava a conclusão de que se tratava de um belo exemplo do idealismo e do desprendimento do cientista – o interesse pelo conhecimento sobrepuja a vaidade pessoal. Entendi a mensagem, mas minha conclusão acabou sendo outra: como o poder mal exercido ou mesquinho e a sua busca nos tornam ridículos.
* Tibor Rabóczkay é professor titular aposentado do Instituto de Química (IQ) da USP. Artigo publicado originalmente no dia 18 de junho de 2018, no Jornal da USP.
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