Data: 21/02/2018
Os dramas dos refugiados que marcam o início do século XXI são uma realidade também na América do Sul. As notícias que chegam das regiões fronteiriças com a Colômbia e o Brasil são alarmantes. Em Roraima, segundo informações oficiais, 42 mil venezuelanos chegaram ao Estado no ano passado, o que corresponde a 10% da população local. Grupos de venezuelanos foram atacados na cidade de Boa Vista e as ações dos governantes têm sido pouco acolhedoras diante de um quadro de crise humanitária.
A solidariedade aos refugiados que migram para a Europa, oriundos de países em guerra como a Síria ou de regiões como o norte da África, é sempre mais simples de ser verbalizada do que aquela que ocorre diante de nós. Os países que deveriam estar mais atentos ou que possuem maior proximidade com a Venezuela tratam o tema com uma perspectiva que contempla mais as demandas de seus quadros políticos internos do que o dever de solidariedade às pessoas e grupos envolvidos na crescente tensão. Brasil, Colômbia e Espanha perguntam-se mais sobre o desfecho político que lhe são convenientes do que pelas soluções possíveis a partir dos venezuelanos. A sucessão presidencial na Colômbia e a polarização vivida no Brasil, torna a Venezuela um tema na batalha verbal das redes onde o que menos interessa são os dramas vivenciados pelos venezuelanos. No caso da Espanha, interessa ao governo conservador de Mariano Rajoy, o constrangimento às novas e antigas lideranças de esquerda. O ex-primeiro-ministro José Luis Zapatero, por exemplo, foi acusado pelo principal jornal espanhol de ser um agente do governo de Maduro nas propostas de negociação com os grupos opositores.
A Venezuela, país com pouco mais de 30 milhões de habitantes, exerce um grande simbolismo na América Latina. A terra onde nasceram Simón Bolívar (1783-1830) e Francisco de Miranda (1750-1816), líderes dos processos emancipatórios do século XIX, possui em seu território algumas das paisagens naturais mais conhecidas das Américas: a Cordilheira dos Andes, a Floresta Amazônica e o mar caribenho. As associações entre o paraíso terrestre e o Novo Mundo, presentes nas crônicas do século XVI, perpassam o imaginário de um país à beira de um colapso e, desafortunadamente, cada vez mais próximo do inferno do que do paraíso.
Sem solução mágica
Crises, que merecem esse nome, são fenômenos complexos e sem soluções mágicas. Sinteticamente, pode-se identificar os dois grupos em disputa. De um lado, o governo de Nicolás Maduro e a defesa do grupo político que chegou ao poder em 1999, com a eleição de Hugo Chávez (1954-2013). De outro, a oposição dirigida pelas elites tradicionais e que acusa o governo de perseguição e manipulação das regras e leis para perpetuar-se no poder. Entre os dois grupos, a maioria da população que enfrenta desabastecimento, a fome e a desnutrição. A violência, sintoma da falência do Estado, explode nas ruas dos grandes centros e pelo interior do país.
A esgrima argumentativa poderia ser edulcorada com a batalha, anacrônica, do século XX: a defesa da democracia liberal ou do projeto do socialismo para o século XXI. Na prática, os contornos ideológicos são insuficientes para explicar o autoritarismo presente nos dois grupos e os riscos nos enfrentamentos que se acirram. A luta pelo poder é voraz e, nesse caso, o regime de Maduro utiliza estratégias como a perseguição aos opositores, mudanças de regras e leis, dando contornos de legalidade às manobras de perpetuação no poder, e a adoção de um viés cada vez mais autoritário como proibir que a oposição caminhe unida para a eleição presidencial, prevista para o próximo dia 22 de abril.
A oposição, ao assumir o controle da Assembleia Nacional, na eleição de 2015, comprometeu-se a depor Maduro em um curto período. A ideia de revanche antecipava o tipo de embate que temos assistido. Acusando o chavismo de ser executor de práticas populistas, os opositores não se incomodam em flertar com o autoritarismo para apagar o legado chavista. O autoritarismo, como exposto, é um recurso bem conhecido pelos dois grupos.
Muitos analistas buscam na ação dos opositores de Salvador Allende (1908-1973) o modelo dos opositores de Maduro. No Chile, grandes empresários que provocaram desabastecimento, convulsão social e o agravamento de uma situação que culminou na morte do presidente socialista e o golpe de Pinochet, em 1973.
A comparação histórica, entretanto, deveria ser mais cuidadosa. O modelo introduzido por Chávez significou a redução de desigualdades e aprofundamento da participação popular. Maduro, sem o carisma e sem o mesmo preparo político, governa um país assolado pelo empobrecimento e com práticas autoritárias. A experiência chilena é distinta do projeto bolivariano.
O descontentamento com Maduro não é apenas dos grupos neoliberais e pró-Estados Unidos. Ele envolve milhões de pessoas que, outrora defensoras e legitimadoras do chavismo, estão ávidas por mudanças. A base da pirâmide social venezuelana, mais do que resolver um conflito político-ideológico, sente-se aprisionada entre a fome, a escassez de alimentos e a tentativa de sair do país como refugiados incômodos em países vizinhos. Estima-se que mais de 2,5 milhões de venezuelanos deixaram o país, dos quais 600 mil em direção à Colômbia.
O papel dos EUA: receios e riscos para a região
A atuação dos EUA no conflito é desastrosa. A retórica anti-imperialista de Chávez e a repetição quase caricatural por Maduro expressam apreensões que afligem todo o continente latino-americano. A Venezuela, não nos esqueçamos, é grande produtora de petróleo e essa riqueza é parte dos problemas do país.
A crise econômica, à parte os desacertos de Maduro, foi potencializada com a queda do preço do petróleo no mercado internacional. Em 1999, quando Chávez venceu as eleições, o barril de petróleo custava em torno de US$ 11,00. O preço subiu sucessivamente até o barril ultrapassar a casa dos US$100,00, em 2011. Nos últimos anos, o preço despencou, para algo em torno de US$ 30,00 e, atualmente, vale o dobro. O setor petroleiro é responsável por 80% das exportações venezuelanas. A queda do preço, comprometeu o orçamento e as conquistas sociais dos anos anteriores como a diminuição da pobreza, o aumento das despesas com saúde pública e da cobertura previdenciária.
As manifestações de Donald Trump e de seu secretário de Estado, Rex Tillerson, sobre um desfecho rápido para a crise na Venezuela, acendeu os receios de uma intervenção norte-americana em relação ao governo de Caracas. Em 2002, os EUA apoiaram a tentativa de golpe contra Chávez. Na viagem feita à Buenos Aires no início de fevereiro, Tillerson afirmou que “ficar de braços cruzados é deixar que o povo venezuelano continue sofrendo”. A “benevolência” norte-americana é conhecida e, sob Trump, ainda mais aterradora em relação aos latino-americanos e sua visão sobre os povos do continente. O programa norte-americano prevê a aplicação de sanções econômicas e aplicação de embargos comerciais à Venezuela. Talvez, não se restrinja a estas medidas, pois a intervenção militar foi apresentada pelo próprio Trump em agosto de 2017. O discurso do governo Trump em “defesa dos interesses dos venezuelanos que lutam pela liberdade” foi, mais do que nunca, recebido com reticência no continente. Os governos do México, Colômbia e Bolívia condenaram as intenções de alguma solução que não seja negociada internamente.
A retórica trumpista soa como ameaça, mas também oferece alguma sobrevida ao regime de Maduro, ao alinhar apoios internos e externos contra o discurso imperialista.
Alguma saída?
Voltando aos refugiados, à crise econômica, social e humanitária que se abate sobre a Venezuela é necessário reiterar que a complexidade do quadro passa pela negociação entre vozes discordantes e alguma tentativa de sensatez. Entre os pontos imprescindíveis devem estar a realização de eleições transparentes em igualdade de condições e o respeito das partes aos resultados. Também é fundamental a libertação de presos políticos e o estabelecimento de uma comissão da verdade, conforme circula entre os negociadores internacionais. A oposição, por sua vez, deve abdicar dos pedidos de embargos comerciais e facilitar a retomada do diálogo e pensar que, caso chegue ao poder, será rapidamente cobrada pela população. A impaciência poderá ser o motor radical de um povo que deseja maior liberdade, mas que também tem fome e sede de alguma justiça social.
Os grupos políticos, ativistas e a imprensa dos países vizinhos, incluindo o Brasil, deveriam encarar com seriedade o problema venezuelano e exercer uma solidariedade que não seja seletiva a partir das convicções e paixões existentes em torno do chavismo. A solução estará mais próxima, quanto maior for a pressão para uma ação dos governos da região diante da crise humanitária que ocorre logo ali, um pouco acima de nossas cabeças. A crise também é nossa, como vimos nas vergonhosas cenas de ataques a moradias e abrigos de venezuelanos, ocorridas em Boa Vista (RR).
A cegueira, ignorância ou apego político não eximem ninguém de sua responsabilidade diante do quadro vivenciado pelos vizinhos. Seja pelas questões humanitárias ou pelos riscos de colapso institucional, a crise não é problema exclusivo dos venezuelanos.
* José Alves de Freitas Neto é professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX). (Texto publicado originalmente nesta data no site da Unicamp) |