Data: 23/11/2017
Outubro de 2017: diante de um processo político marcado por uma ruptura da ordem institucional, pela obstrução de um projeto político que, mesmo com seus limites, contemplava a incorporação das demandas da classes trabalhadora e em meio a uma avalanche de denúncias de corrupção acobertadas por um Judiciário que se comporta como cúmplice do golpe engendrado, assistimos no Brasil a uma ofensiva conservadora sobre os direitos individuais que imaginávamos consolidados. Reformas trabalhista e previdenciária, terceirização das atividades fins, a retomada da sanha privatista e tantas outras pautas são diariamente investidas sobre a Constituição de 1988, colocada em frágil posição diante de um discurso falacioso que justifica tamanho desmonte pela necessidade de modernização e reforma do Estado.
Outubro de 1917: em meio à Primeira Guerra Mundial e tendo passado pela revolução de fevereiro, que logrou o êxito de ter encerrado o reinado da mais longeva dinastia europeia – a dos Romanov –, a Rússia permanecia em uma situação caótica, marcada pela escassez de alimentos e destruição da já deficiente infraestrutura. A guerra revolveu as entranhas da sociedade europeia e, no caso russo, não foi possível recolocá-las no lugar. Desde abril, os protestos se avolumavam e o governo de Kerensky enfrentava instabilidade e ameaça de golpe – como o articulado pelo comandante do exército russo, o general Kornilov. O Comitê Militar Revolucionário tomou a guarnição de Petrogrado e, dias depois, os bolcheviques anunciavam o fim do Governo Provisório. Com a chegada dos bolcheviques ao poder, é assinado o Decreto que retirava a Rússia da guerra e o Decreto da Terra, que instituía o fim da propriedade privada dos meios de produção. Foi instituída a autogestão das fábricas e o Código da Terra e da Família ampliava como nunca os direitos das mulheres. (GOLDMAN, 2014).
Mas o que o centenário da Revolução Russa tem a nos dizer? Quais questões podemos levantar diante dessa efeméride? Para Hill, a “história precisa ser reescrita a cada geração, porque embora o passado não mude, o presente se modifica”. Diante dessa ofensiva conservadora, devemos pensar os impactos da Revolução Russa sobre aquilo que nos tornamos hoje. O século XX se torna incompreensível se não considerarmos os eventos de outubro de 1917, que inauguraram uma era marcada pela bipolaridade política e pelo antagonismo entre dois blocos ideologicamente antagônicos. A importância dos eventos de outubro para o século XX é tamanha que Eric Hobsbawm, de forma irônica, salientou o paradoxo histórico de que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro tenha sido o de salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto na paz. Até mesmo a compreensão de nossa história recente e do ciclo de golpes militares que varreu a América Latina nas décadas de 1960 e 1970 se torna incompleta se prescindirmos dessa variável.
Vivemos uma forte ofensiva conservadora, não apenas no Brasil. Pelo mundo, proliferam partidos de extrema direita (como a AfD, na Alemanha e a FN, na França). Observamos o crescimento eleitoral da direita em diversos países. Discursos xenófobos, misóginos e homofóbicos têm tido cada vez mais destaque. Na academia, observamos uma onda revisionista que apresenta contornos conservadores e que se aproxima da velha propaganda anticomunista do auge da Guerra Fria. A discussão em torno do centenário da Revolução Russa ficou restrita a um público reduzido, uma vez que muitos consideraram anacrônico discutir hoje Revolução Socialista e movimentos sociais. Em outros momentos, já observamos fortes ofensivas conservadoras. Na década de 1990, no contexto do desmoronamento do bloco socialista e da euforia neoliberal, Fukuyama havia decretado o “fim da História”, ao sepultar as esperanças de que houvesse uma alternativa capaz de se tornar uma opção ao capitalismo liberal.
Mas, do mesmo modo que na Rússia pré-revolucionária a insatisfação acarretou a cena de milhões de trabalhadores mobilizados no cenário político, apenas a ação coletiva da classe trabalhadora, acrescida de outros setores da sociedade, e a ampla mobilização popular serão capazes de frear o “trator das maldades” posto em movimento pelo ódio e ganância das elites do país. Oxalá esse ímpeto reacionário seja estancado para que, em tempos de Escola sem Partido, não sejamos cerceados em nossa autonomia e possamos debater temas fundamentais como a Revolução Russa.
*César Queirós é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor do Departamento de História e vice-coordenador do programa de pós-graduação em História da Ufam. |