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  31/07/2019 - por Ivânia Vieira



Manhã de 15 de maio de 2019. O azul do céu de Manaus estava escondido. Na terra, pés seguiam para a entrada ou a saída da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Era possível ouvir o som da andança de professores e professoras, estudantes, técnicos-administrativos; e o ronco dos carros e motos rumo ao Bosque da Resistência, onde todos se encontrariam para concretizar o protesto contra o corte de verbas na educação, e as restrições, agressões e ameaças feitas pelo governo federal, e em defesa da existência e autonomia da universidade pública, gratuita e de qualidade.

Estudantes em movimentos ágeis, quase voadores, subiam e desciam no pequeno carro de som, estendiam a rede imaginária da participação, cantando, bradando palavras de ordens. Uma delas: fechar a entrada do Campus Uni-versitário. A outra: seguir em marcha. Em pouco tempo, o grupo de algumas dezenas virou centenas de caminhan-tes. Um dia fora de série, de muitos registros. Eis alguns deles:

Primeira cena anotada

Mulheres e homens de cabelos grisalhos olhavam firmes para frente. A maioria dessas cabeças brancas carrega histórias de resistência que somam 30, 40, 50 anos de lutas contra a repressão; pelo direito ao voto amplo, geral e irrestrito; pelas liberdades sindicais; pela volta dos expatriados e restituição dos direitos políticos daqueles cassa-dos durante a ditadura militar. Sem combinar lugares, compunham um bloco da história do movimento sindical do Amazonas, agora, em marcha pela Avenida General Rodrigo Octavio. Emocionados, já tiveram os cabelos pretos e fartos. Muitos deles voavam em pequenos espaços para organizar manifestações de protestos e sintonizar pala-vras de ordem em tantos lugares do Amazonas.; foram presos, espancados, escorraçados; fundaram sindicatos, partidos políticos, frentes amplas; plantaram possibilidades, ensinaram a manter o sonho vivo.

Por que estavam ali? Porque sabiam o significado da repressão militar, da supressão de direitos e do quanto é per-verso viver sob a sombra do medo, da imposição do silêncio. Na juventude disseram “não” aos governos ditatoriais e aprenderam na prática a travar batalhas para tornar o Brasil um país democrático. Porque entendem a educação e a produção do conhecimento como um dos espaços de expressão e qualificação da democracia. Voltaram à mar-cha porque os retrocessos são realidade e ameaçam ser ampliados para que o temor se faça o senhor do presente e norteie a tomada de decisão. Olhares se intercruzaram, abraços profundos se repetiam e mãos se entrelaçaram firmes. Estavam na rua, marchando na chuva para dizer, mais uma vez, “não” ao retrocesso.       

Do céu caíram pingos d’água graúdos até a chuva se fazer completa e ensopar as roupas, os corpos, soltar solados de sapatos e sandálias e dissolver papeis. O vento entortou sombrinhas e guarda-chuvas. Os caminhantes se-guiam. Mentes e corações aquecidos. Motoristas, em maioria, buzinavam e faziam gestos de apoio aos participan-tes da marcha.

Segunda cena anotada


Os jovens deslizavam junto com a água no asfalto. Abriam faixas para publicizar protestos; erguiam cartolinas; ras-cunhavam frases e imagens nos rostos e nos braços; cantavam e tinham tanto vigor nessas cantorias que nos fize-ram cantar; gritavam palavras de ordens da marcha e nos animavam a gritar também; a erguer os braços e cerrar as mãos no alto.

Cansaço? Nada. Havia nessa caminhada uma energia singular, uma razão sintonizada para estarmos todas e todos ali, molhados e dispostos a seguir...  Juntos, velhos e moços, na mesma luta sem ignorar a diversidade e a adversi-dade política que podem ser manejadas, fragmentar a resistência. Naquele momento, naquele espaço, era o fio de linha da unidade que costurava as motivações para sair de casa, da sala de aula ou do gabinete universitário e juntar-se aos demais na rua.

Terceira cena anotada

Centro de Manaus. Temperatura mais elevada. Céu aberto. Já eram muitas as marchas. Professoras e professores da rede estadual e municipal, representantes dos povos indígenas, quilombolas, negros, de atingidos por barra-gens, dos movimentos por moradia e dos LGBT+, grupos de artistas, cantoras e cantoress, dançarinas e dançarinas e artesãs e artesãs. Eles chegavam a partir da Praça da Saudade, da Praça do Congresso, das avenidas e ruas do centro da capital amazonense até compor a grande caminhada, a perder de vista. Para a mídia, eram entre 10 e 40 mil pessoas reunidas; a coordenação dos movimentos calculou, com ajuda de um professor de matemática, em 50 mil. No dia 30 de maio, um novo protesto local e nacional. As razões para protestar permanecem e se tornaram mais severas.

Escrita de um roteiro sem ponto final

No dia 24 de julho, o CNPq anunciou: a suspensão da divulgação de aprovados em seleção de bolsistas por falta de recursos financeiros; o corte no orçamento das universidades e institutos federais de 30%, o que implica em parali-sia de uma série de atividades e de programas, pagamentos de bolsas de iniciação científica e de extensão; a sus-pensão da realização de concursos públicos por instituições federais;  o corte de verbas para  financiar moradia popular; e o encurtamento do espaço de poder dos reitores de universidades federais.

O programa “Future-se”, apresentado no dia 17 de julho pelo MEC, deve alterar profundamente a natureza da universidade pública no País. A proposta é criar um fundo privado de captação de recursos na Bolsa de Valores para financiamento de pesquisa, inovação, empreendedorismo e internacionalização das instituições de ensino.  Faltam mais informações sobre a proposta governamental e sobram preocupações por parte da Andifes,  ANDES-SN e dos estudantes. O projeto faz parte de uma série de mudanças de interesse do governo entre as quais a contratação de professores universitários sem concurso público. O ensino público federal, nesse formato, desaparecerá.

Em regiões como a Amazônia e o Nordeste, medidas desse tipo produzem resultados desastrosos. Atrasam o pro-cesso de formação de mestres e doutores que nesses lugares têm o índice mais baixo na comparação com o Sul e Sudeste; ampliam a dificuldade de ingresso de jovens ao ensino universitário; e se constituem em obstáculos ao direito de produção de conhecimento e de inovação tecnológica a partir de recursos humanos qualificados nas regiões. São decisões que empurram a Amazônia à dependência de um sistema institucional que a submete ao atraso estratégico.    
 
Também estão sendo  operacionalizados à exploração dos recursos naturais da Amazônia, revisão das terras indí-genas demarcadas e das terras de comunidades quilombolas, afrouxamento da legislação ambiental, a facilitação do uso de agrotóxicos e a privatização de bens públicos.

Parcerias internacionais, que têm em sua configuração o desrespeito aos direitos humanos, são partes desse qua-dro de ações do governo que escancara o Brasil aos negócios privados e tende a aprofundar o nível de desigualda-de no País ao mesmo tempo em que alimenta a expansão da cultura da violência como regra de vida.

Professoras e professores, estudantes, técnicas e técnicas são convocados e convocadas mais uma vez, a ir às ruas de asfalto e virtuais. Somar com outras vozes e caminhantes em luta pela dignidade da vida, o que passa, necessa-riamente, pela construção das formas de enfrentamento ao plano neoliberal nacional/global e aos autoritarismos governamentais.

Se em uma manhã de chuva amazônica caminhamos até perder os calçados, nos encontramos como há muito não acontecia, trocamos olhares que contavam as histórias das batalhas de outros tempos; e, se na tarde daquele mesmo dia, nossos corpos foram transformados na arena das nossas lutas – maior que a praça e as ruas; e, se no anoitecer, a cantoria indígena nos fez dançar a esperança, tem uma utopia a ser tocada e carregada de dentro para fora e de fora para dentro. Assim foi no passado. O presente atordoa, ameaça, gargalha de nós. É preciso enfrentá-lo com sabedoria.



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