Experimento a estranha sensação de que algo se perdeu nesse processo eleitoral. Entre Sarney e Itamar o desafio era o de criar alguma base política e econômica sobre a qual se pudesse erigir uma sociedade mais ou menos democrática. Depois, a disputa entre PT e PSDB, a que balizava a interpretação do que foi e a projeção do que poderia vir a ser a sociedade, nos colocava diante de propostas de gestão do capitalismo, não mais que isso. E agora? Passadas as Jornadas de Junho de 2013, o golpe/impeachment e o aprofundamento das contrarreformas, o que sobrou?
Sobrou exatamente o que havia ficado da ditadura civil-militar, exatamente aquilo que as elites não tiveram interesse em resolver, o que na década de 1980 se chamava de "entulho autoritário".
Pois bem, o entulho não foi recolhido. Muito ao contrário, foi mantido a céu aberto. E os desabrigados das ideologias, os órfãos das utopias, os carentes de esperança, os ansiosos por algo que fosse "contra tudo isso aí" colheram o entulho e erigiram uma ruína na qual cultuam o niilismo e tornam a ignorância sua principal crença.
Não tivemos projetos de sociedade diferentes concorrendo às eleições em anos passados. E continuamos a não ter. O que temos, então?
Temos uma sociedade dividida entre o desejo de preservar uma democracia restrita e o de instaurar uma autocracia absoluta. É muito pouco!!
Não estamos mais discutindo capitalismo, socialismo, social-democracia. Não estamos tratando do embate entre esquerda, centro e direita. O problema é muito mais grave. Estamos discutindo se o Brasil pode ou não se tornar uma ditadura. E mais grave ainda: se essa ditadura pode ganhar vida através de procedimentos democráticos, com o apoio da maioria dos eleitores.
Não tenho notícia de que na Alemanha pós-nazismo tenham ocorrido movimentos de massa postulando a volta das ideias que moveram Hitler e seus seguidores.
No Brasil, o modo irresponsável e omisso com que foi tratada a "experiência ditatorial de 1964" adubou o solo da reação. A transição "transada", "lenta gradual e segura", "pactuada" tem em um capitão e em um general do Exército, candidatos a presidir o Brasil, seus rebentos mais destacados.
Encerra-se tragicamente mais um ciclo de nossa história. Ganhem ou não ganhem as eleições, os destroços com os quais se construiu suas candidaturas viraram templos devotados ao culto do autoritarismo.
Os feiticeiros já perderam o controle do feitiço.
*Marcelo Seráfico é doutor em Sociologia e professor do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Ufam.
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