Não é de se estranhar que Temer, Cunha, Jucá, Padilha, Geddel e Moreira Franco, portadores de extraordinárias habilidades para maquinações parlamentares (aplicadas, por exemplo, no recente episódio do impeachment desprovido de crime de responsabilidade) privilegiariam “rotas alternativas” para inviabilizar (na prática) a legislação trabalhista. Por mais elevadas que sejam as dosagens de automatismo na inserção e reprodução sociais, efeito colateral típico de um modelo de produção baseado na acumulação monetária insaciável, no predomínio da abstração econômica (real) sobre a vida, não se ataca a legislação trabalhista sem ônus político. Encontrar subterfúgios para diminuir esse ônus é parte constitutiva da tarefa de esvaziar a regulamentação dos direitos trabalhistas.
Tais “rotas alternativas”/subterfúgios estão condensados em duas medidas: as aprovações legislativas da terceirização irrestrita (ou seja, da possibilidade de empresas estenderem a terceirização também para as chamadas “atividades-fim”) bem como da prevalência de conteúdo “negociado” (por meio de convenções ditas “coletivas”) sobre o legislado. Aprovadas tais medidas, a tendência à desregulamentação, precarização, rotatividade será galvanizada e receberá suporte legal, institucional, e, com isso, a correia de transmissão entre trabalho formalizado, assalariamento e direitos trabalhistas, a rigor cambaleante desde sempre no Brasil, estará sustada. No fundo, encontra-se a secular obsessão de elite com o rebaixamento dos custos de produção e reprodução da força de trabalho no Brasil, tão enraizada que, no primeiro encontro oficial de banqueiros com o presidente Michel Temer, a pauta foi exatamente a “flexibilização” da legislação trabalhista. O termo “flexibilização”, a propósito, consagrou-se como um eufemismo para caracterizar medidas de deterioração ou destruição de direitos. Conforme noticiado pelo jornal Valor Econômico:
"o que nem todo mundo sabe é que na pauta de alguns dos principais bancos brasileiros não está a taxa de juro elevada, que ainda hoje é vista por algumas alas, especialmente à esquerda, como benéfica à banca. Um dos assuntos que mais têm dado dor de cabeça às instituições financeiras é o trabalhista […]. Cansados de brigar nos tribunais, as instituições financeiras passaram a trabalhar ativamente na proposição de mudanças na legislação atual. Com o crescimento da taxa de desemprego nacional para 11,3%, alcançando 12,2% em São Paulo, onde estão sediadas algumas das maiores instituições, imagina -¬se que seja mais fácil aprovar uma reforma. A terceirização, prevista no Projeto de Lei 4.330, aprovado em abril do ano passado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, é uma das bandeiras dos bancos. Outra é a permissão para que acordos definidos em convenção prevaleçam sobre a legislação[1]".
Tratando de “rotas alternativas”, um “atalho” super conveniente “caiu como uma luva” para Temer e seus sustentáculos: a antecipação dos caminhos da contra-reforma trabalhista por ninguém menos que o Poder Judiciário, nas suas mais altas instâncias – STF (Supremo Tribunal Federal) e TST (Tribunal Superior do Trabalho). Na verdade, uma espécie de “divisão do trabalho” entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (tácita, resultante de imediata afinidade conservadora e de classe, mas também calculada, em grande medida). Declarações públicas do Ministro Gilmar Mendes em um Seminário sobre “soluções para a infraestrutura no Brasil” são emblemáticas: com a típica desenvoltura “militante”, arrancou regozijo da plateia quando afirmou que o TST tem “uma concepção de má vontade com o capital”. Em entrevista após a palestra sublinhou, ainda:
"eu tenho a impressão de que houve uma radicalização da jurisprudência no sentido de uma hiper-proteção do trabalhador, tratando-o quase como dependente de tutela, em um país industrialmente desenvolvido que já tem sindicatos fortes e autônomos[2]".
Afirmou, ademais, arrancando risos da endinheirada plateia: “esse tribunal é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”[3].
Decerto, esse “figurino” descrito por Mendes não se encaixa no atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, cuja afinidade ideológica com o Ministro do STF é cristalina, e já anteriormente explicitada quando atuaram juntos na área jurídica do governo FHC. No dia 21 de setembro, enquanto Temer apresentava, “de bandeja”, o predomínio do negociado sobre o legislado e a terceirização irrestrita a grandes empresários norte-americanos, em um nababesco almoço em Nova York, Ives Gandra preconizava, em um evento em São Paulo, ambas as medidas, sublinhando o papel destacado que o STF já está desempenhando. Além do mais, ratificou a posição em entrevista ao jornal Estado de São Paulo. O Presidente do TST falou em “desbalanceamento” nas decisões do Tribunal a favor dos empregados[4]. Posteriormente, no dia 6 de outubro, em uma declaração a um telejornal de uma grande empresa midiática, o Presidente da República salientou o quanto “era interessante como o próprio Judiciário já está começando a fazer a reforma trabalhista”, de maneira que o governo não, necessariamente, precisaria “levá-la adiante”. E, de fato, por intermédio especialmente do STF, o Poder Judiciário está atuando na contra-reforma trabalhista. Vale resgatar que em setembro o Ministro Teori Zavascki, na condição de relator, acatou a primazia de um determinado conteúdo “negociado” sobre o legislado, ao acolher a argumentação do recurso de uma usina de cana-de-açúcar contra a reivindicação de um cortador de cana de Pernambuco[5]. Além do mais, o Supremo Tribunal Federal está na iminência de julgar o Recurso Extraordinário 958.252 impetrado pela empresa Celulose Nipo-brasileira (Cenibra), condenada pela Justiça Trabalhista por “transferência fraudulenta e ilegal” de suas atividades-fim. Na órbita desse julgamento encontra-se a Súmula 331 do TST, que vincula ao tomador de um serviço a obrigação de assumir as obrigações trabalhistas no caso de desrespeito do contrato de trabalho por parte da empresa sub-contratada.
Um desdobramento muito provável do desmanche da (cambaleante) correia de transmissão entre trabalho formalizado, assalariamento e direitos trabalhistas é a massificação de prestadores de serviços, dependentes de renda diretamente auferida pelo serviço prestado, excluídos dos chamados “salários indiretos” e com vínculos rarefeitos com as garantias escritas na legislação trabalhista, posto que o “negociado” pode predominar sobre o “legislado”. “Haverá metalúrgico sem metalúrgica, comerciário sem comércio, professor sem escola[…]. Eles serão funcionários de um escritório […] que vai encaminhar trabalhadores para essa ou aquela área conforme a sua atividade”, adverte o senador Paulo Paim, relator do Projeto de Lei da terceirização[6]. Aqueles que não se converterem em prestadores de serviços terceirizados, ainda, assim, não terão assegurados, de antemão, descanso remunerado, férias, décimo terceiro salário, dentre outros direitos. Se as férias durarão 30 ou 5 dias, será uma matéria suscetível a “negociação”, por exemplo. Os estragos da contra-reforma trabalhista alcançam, ainda, o financiamento da Seguridade Social, composta pelo tripé saúde, previdência e assistência; atingem também a vida sindical do país, já fragilizada por comportar, apenas minoritariamente, sindicatos autônomos e classistas. Trata-se, em síntese, de um combustível aditivado sobre esse fenômeno que especialistas, como Marcio Pochmann, denominam de “uberização” das relações de trabalho; trata-se da ampliação da imensa massa de “precariados” espalhada pelo mundo.
A obsessão para o rebaixamento dos custos de produção e reprodução da força de trabalho, e o consequente combustível à “uberização” do trabalho, envolve também a pressão pelo fim do aumento continuado do salário mínimo. Essa pressão decorre do fato de que o salário mínimo serve como uma espécie de balizamento indireto ou extra-oficial das negociações salariais, em geral. Entre os anos de 2002 a 2014, a valorização real foi de 72%, um percentual modesto se tomado como parâmetro a secular iniquidade social do país (que engloba níveis alarmantes de concentração de renda e riqueza), mas significativo se levada em consideração a ausência de políticas de valorização continuada do salário mínimo ao longo da história republicana brasileira. Ao contrário, o arrocho salarial foi um dos vetores estruturantes do projeto de modernização conservadora implementado pela ditadura empresarial-militar. Fato é que a elevação do salário mínimo no período lulopetista revelou-se também como intolerável para as elites empresariais.
Essa mesma elite empresarial, capitaneada pelo setor ou fração financeiro-rentista, mantém-se permanentemente vidrada com a garantia da “solvência” do Estado brasileiro. E isso, para quê? Preservar as condições para o “pagamento” da incomensurável dívida social? Não. Para “honrar” rigorosamente o pagamento dos juros e serviços de um sistema (não auditoriado) de endividamento público. O agente financeiro e hoje Ministro da Fazenda Henrique Meirelles falou, por exemplo, em “reverter” a “queda da confiança da sustentabilidade da dívida pública”. São com essas perspectivas que tal elite insiste na tese segundo a qual o orçamento público do país não comporta a Constituição Federal de 1988 – o que, na prática, é assumir que uma enorme massa de mulheres e homens não cabe no Produto Interno Público (PIB) brasileiro. A propósito, na primeira visita oficial ao país depois do impeachment da presidenta Dilma, o Fundo Monetário Internacional prescreveu uma “revisão” no modelo de valorização anual do salário mínimo (herdado do período lulopetista) e uma (contra)reforma da Previdência (que englobe o acesso a benefícios previdenciários e os reajustes desses benefícios), alegando que são medidas necessárias para a “recuperação da sustentabilidade fiscal”, além de uma (contra)reforma trabalhista.
Tais prescrições encontraram fina sintonia com o programa “Ponte para o Futuro” que apresentou à elite empresarial um vasto cardápio contra-reformista, cujo alcance pode ser dimensionado pelas considerações de um dos seus elaboradores – Roberto Brant, ex-ministro da Previdência no governo FHC: esse programa “não foi feito para enfrentar o voto popular”, afinal de contas “com um programa desses não se vai para uma eleição”. E, de fato, não foram para uma eleição. O impeachment desprovido de crime de responsabilidade serviu como uma descarada “eleição indireta”. No rol tenebroso de desmantelamento de direitos, destaca-se também a (contra)reforma da Previdência que, a propósito, contém uma das medidas mais prejudiciais à organização da vida cotidiana de milhões de famílias, localizadas nos mais diversos lugares do território nacional: a desindexação da aposentadoria perante o salário mínimo. Com a desindexação almeja-se instaurar como meio exclusivo de atualização/correção dos valores da aposentadoria e demais benefícios a variação da inflação. Na prática, isso impede que aumento do salário mínimo reverbere-se como aumento da aposentadoria, fonte principal de renda de milhões de brasileiras e brasileiros. E não para por aí: na proposta de (contra)reforma previdenciária consta a redução pela metade do valor das pensões, suplementando-os com 10% por dependente, tanto no âmbito público quanto privado, bem como a proibição da acumulação de aposentadoria e pensão[7]. Ademais, eleva a idade mínima para 65 anos (com uma espécie de “gatilho” para aumentar o piso da idade conforme a elevação do tempo de vida médio pós-aposentadoria) e a estende também para mulheres, revelando um inaceitável viés machista[8].
Cabe registrar, ainda, que a coerência (incoerente) do FMI não deixaria de contemplar a proposta de imposição de um teto para gastos públicos, por 20 anos, contida na PEC 241 – na verdade, teto para os chamados gastos primários, pois os gastos com juros ficarão imunes ao congelamento. Chamada de “novo regime fiscal”, visa reduzir despesa primária da União em percentual do PIB. Na prática, isso significa atrelar e limitar os gastos sociais à variação da inflação do ano anterior, independente do aumento da população e do nível de arrecadação. E, na medida em que fica amarrado à variação inflacionária, o “novo regime fiscal” esvazia o já debilitado papel de participação na formação do orçamento público por parte de trabalhadores e trabalhadoras. Para se dimensionar o estrago, é importante considerar estimativas tais como: perda de recursos para a saúde pública na ordem de R$ 434 bilhões[9]; diminuição anual de cerca de R$ 24 bilhões de investimentos na educação (e obstrução da vinculação obrigatória de receita de 18% da arrecadação)[10]; perda de R$ 868 bilhões na assistência social[11]; um salário mínimo de R$ 400,00, caso a PEC estivesse em vigência desde 1998[12]. Se o PIB do Brasil crescer nos próximos 20 anos no ritmo dos anos 80 e 90, os gastos públicos em relação ao PIB passariam de 40 para 25%. Esse patamar de gasto público é praticado, por exemplo, por Burkina Faso. Se crescer no nível das taxas mais altas dos anos 2000, o percentual seria de 19%, conforme praticado por Camarões[13].
É importante considerarmos que na mesma perspectiva de apaziguar os “ânimos” do mercado e de causar “boa impressão” às agências de avaliação de risco (que orientam investimentos ao redor do mundo globalizado), há quase duas décadas já se pratica o chamado “superávit primário” no Brasil. Apesar da enxurrada de recursos públicos para o mercado financeiro (bombeados, principalmente, pelo sistema da dívida pública), o endividamento bruto do setor público pulou de cerca de 40% do PIB, em 1998, para cerca de 58%, em 2013. No mesmo período, a carga fiscal não diminuiu; ao contrário, elevou-se 6% em relação ao PIB. Desde 2006, a carga tributária situa-se em torno de 33% do PIB. O grande salto dos impostos aconteceu nos governos FHC: de 26,1% do PIB, em 1996, passou para 32,2%, em 2002. O mesmo ocorreu com a dívida pública: de 30,6% do PIB, em 1995, para 60,4%, em 2002. A autoproclamação que o PSDB tenta disseminar (com o beneplácito da grande mídia) de gestores fiscais austeros, promotores da “responsabilidade fiscal”, não encontra amparo nesses dados. A manifestação dessa “austeridade” ocorre, na verdade, nos minguados investimentos sociais que perpetuam as iniquidades seculares da formação social brasileira (conforme o parágrafo seguinte ilustrará melhor).
Com efeito, o déficit público do ano de 2015 foi de 10,34% do PIB – R$ 613,5 bilhões. Esse montante de débito, que inclui gasto financeiro com o sistema da dívida, é chamado déficit nominal. O déficit primário (referente ao “desempenho fiscal de União, estados, municípios e empresas sob controle dos respectivos governos, excluídos bancos estatais, Petrobras e Eletrobras”) representa fração amplamente minoritária do déficit nominal. No ano de 2015, foi de 1,88% do PIB – R$ 111, 249 bilhões. Logo, R$ 501 bilhões (8,46% do PIB) decorreram da sangria do fundo público perpetrada pelo sistema da dívida pública. A PEC, então, impõe um congelamento de gastos públicos, excetuando-se o principal sorvedouro de fundo público: os juros da dívida pública.
Vale registrar, ainda, que as habilidades extraordinárias para maquinações parlamentares de Temer e companhia, aludidas no início do artigo, também operam na concepção, votação e implementação da PEC 241/255. Essa Proposta de Emenda Constitucional condensa e abrevia outras medidas arroladas no “Ponte para o Futuro”, como, por exemplo, a desvinculação de receitas obrigatórias para a educação e saúde e a interrupção da política de valorização continuada do salário mínimo, partindo de um diagnóstico de rigidez orçamentária que comprometeria a “saúde” fiscal do Estado brasileiro (dentro daquela avaliação geral de que a euforia da redemocratização gerou uma Constituição Federal incompatível com um padrão orçamentário “realista”).
De fora também do garrote de duas décadas ficou um mecanismo de endividamento disfarçado, que consiste na “securitização de créditos da dívida ativa” – grosso modo, a conversão de dívidas em títulos passíveis de serem negociados no mercado financeiro – visando a “antecipação de receitas”. Há um Projeto de Lei do Senado – 204/2016 – voltado estritamente à legalização desse mecanismo camuflado de endividamento. Em um cenário de queda vertiginosa de arrecadação, os governantes, mediante a permissão contida no projeto de lei de venda de dívidas para além do prazo de suas respectivas gestões, buscarão, avidamente, a antecipação de receitas, turbinando, ainda mais, o já turbinado e intrincado sistema público de endividamento. É endividamento gerando mais endividamento, e a resposta para isso será mais endividamento, suscitando um círculo vicioso que amplifica a tendência estrutural de financeirização/ficcionalização da produção capitalista. Na esteira desse projeto de lei, há graves riscos de deterioração, ainda maior, do quadro de endividamento (e das respectivas respostas fiscais), na medida em que o PLS não estabelece limite para o deságio na negociação dos títulos de dívida, ou seja, para a diferença entre o valor nominal e o valor negociado (em geral, mais baixo). Trata-se, como visto, de um estímulo institucionalizado à lógica curto-prazista, típica de um capitalismo financeirizado de ponta a cabeça. A escala e espraiamento do endividamento público (não só no Brasil, mas no mundo, guardadas as respectivas particularidades), a dependência dos entes públicos perante os mecanismos de endividamento, tornam as dívidas públicas combustíveis indispensáveis para o funcionamento global do sistema produtor de mercadorias, tanto no que se refere à esfera da produção quanto à esfera da circulação. E considerar que há poucos meses houve um impeachment “motivado” por “pedalada fiscal”… É tragicômico! O autor do PLS 204/2016 chama-se José Serra, senador pelo PSDB de São Paulo, atual ministro das Relações Exteriores.
Perpassando esse conjunto de medidas contra-reformistas o que há é um processo aberto de pilhagem, rapinagem, espoliação dos fundos e ativos públicos, que elimina, inclusive, mediações mínimas necessárias para o funcionamento de modelos políticos de conciliação, como o lulopetista. A verve da espoliação é tamanha que nem o bolsa-família ficará de fora da “raspagem”. O ministério de Desenvolvimento Social retirou o benefício de 1,1 milhão de beneficiários, em nome de uma economia de R$ 2,4 bilhão por ano. Desse montante, 469 mil beneficiários foram eliminados do Programa porque alcançaram R$ 440 de renda per capta[14]. O bolsa-família, importante lembrar, corresponde a cerca de 0,5% do PIB: em 2015, contou com não mais do que R$ 27,5 bilhões de orçamento. Além da “raspagem” profunda de fundo público, há também numa medida como essa um propósito de focalizar ainda mais a focalização, retrocedendo a concepções estritamente neoliberais de programas de transferência de renda, exercitadas na década de 90. Em relação à queima dos chamados ativos públicos, o tratamento governamental conferido ao pré-sal, concatenado aos interesses imediatos de transnacionais do petróleo, serve como uma ilustração ostensiva do processo aberto e imediato de espoliação.
Um fio condutor conceitual muito interessante para apreender esse processo imediato de pilhagem foi elaborado por David Harvey. O autor identifica no capitalismo das últimas três décadas do século XX, que adentra pelo século XXI, o que denominou de acumulação por despossessão ou espoliação[15]. O capitalismo atravessado pela crise estrutural, irrompida no limiar da década de 70 do século XX, notabiliza-se por reeditar e ampliar um regime de espoliação aberta, direta, crua, imediata, que na esteira do próprio Harvey e outros formuladores críticos (como Arantes[16], Menegat[17], Becher & Villar[18]) pode ser tratada como a (re)ativação, por meios high-tech, da metodologia da assim chamada acumulação primitiva (mas, num contexto de crise estrutural e sistêmica do capitalismo, e exatamente por causa dos empecilhos e obstáculos para a acumulação capitalista oriundos dessa crise). Em perspectiva análoga, Altvater sintetiza que “[…] a apropriação não pela produção, mas pela desapropriação, é uma tendência da economia mundial do século XXI”[19], lembrando que o atual contexto de crise é marcado pela super-produção (e não sub-produção). A lógica monetária é extravasada para os mais diversos e moleculares escaninhos da vida cotidiana, exprimindo, assim, uma monstruosa pretensão (potencialmente) totalitária de domínio do mundo “natural” e “sociocultural”, ou seja, das “condições objetivas” e “subjetivas”.
Seguindo esse fio condutor conceitual, a atual prioridade rentista no circuito de reprodução capitalista, em um contexto na qual a maioria esmagadora dos fluxos econômicos globais tem procedência financeiro-especulativa, pode ser tomada como expressão fundamental da acumulação por despossessão. A abrangência de formas de obtenção de renda vinculadas à propriedade de ativos financeiros diversos (como títulos da dívida pública), patentes, terra, imóveis etc. é impressionante. Por exemplo, com a aprovação na Organização Mundial do Comércio do Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS, na sigla original inglesa), no ano de 1995, os ganhos das chamadas “indústrias intensivas em conhecimento” (que representam 30% do PIB mundial) provêm muito mais das rendas auferidas com as propriedades intelectuais do que com a produção propriamente dita de mercadorias (sejam bens ou serviços)[20]. Esse contexto econômico-político-cultural assenta-se sobre uma super-acumulação de capital na forma monetária (um dos indícios da crise estrutural de super-acumulação do capitalismo). Nele não é possível delimitar, com exatidão, onde começa e termina o “setor especulativo” e a “acumulação real”. Isso não quer dizer que não exista um setor capitalista industrial e um setor capitalista financeiro, nem focos localizados de contradições entre ambos. Mas, constitui projeção fantasiosa contrapor, de maneira cabal e enfática, um setor industrial “essencialmente virtuoso” por se concentrar nos “investimentos produtivos” em detrimento de um financeiro-especulativo, que não faz outra coisa senão “parasitar” as riquezas produtivas. É fato que a manutenção estratosférica da taxa de juros selic prejudica a produção industrial e beneficia abundantemente o setor financeiro, para ficarmos em um exemplo paradigmático. Porém, embaralhando tentativas esquemáticas (ou esquematistas) de refúgio (teórico e prático), a financeirização do capital industrial (de tipo monopolista, especialmente) é também um fato contemporâneo, e trata-se não apenas da cada vez mais compulsiva dependência do crédito diante da imensa elevação da composição orgânica do capital: trata-se, ademais, do papel exercido pelos chamados ganhos financeiro-especulativos em detrimento dos chamados “ganhos operacionais” na insaciável busca de lucratividade. Analisando o balanço de grandes conglomerados industriais de tipo monopolista, em diversos ramos produtivos e regiões do mundo, conseguimos verificar o peso dos resultados financeiros na composição dos lucros líquidos.
Logo, chamemos a coisa pelo nome: pilhagem, rapinagem, espoliação! Vidrados e agarrados a essa coisa, os endinheirados e poderosos no Brasil insistem na tese segundo a qual o orçamento público do país não comporta a Constituição Federal de 1988 – o que, conforme já registrado, significa assumir, na prática, que uma enorme massa de mulheres e homens não cabe no Produto Interno Público (PIB) brasileiro. Nada além de uma monstruosa coerência com as coordenadas de uma formação social estruturada sobre séculos de escravidão, rapinagem de recursos naturais, que naturaliza o extermínio da juventude negra, pauperizada e moradora de favelas.
Felipe Brito é Professor do curso de Serviço Social da UFF de Rio das Ostras. Atua no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Organizador (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente. Artigo publicado originalmente em https://blogdaboitempo.com.br, no dia 02/12/2016. |