Todo mundo que importa no Brasil é a favor da permanência de Renan Calheiros na presidência do Senado. O presidente da república, o PMDB, o PSDB, o PT, o mercado, a Fiesp e os ruralistas. Por quê seria diferente o Supremo Tribunal Federal? Não que ninguém aí tenha a menor dúvida sobre a ficha corrida do senador. À direita, à esquerda, no centrão, da padaria da esquina aos palácios de Brasília, todo mundo sabe que Renan não tem moral nem pra andar na rua, imagine para ser presidente do senado.
A questão é que esses poderosos todos precisam de Renan no momento. Como precisaram de Eduardo Cunha, no passado recente. Poderíamos dizer que o Brasil precisa de Renan; não é Temer; foi Dilma, Lula, Fernando Henrique... Ele está na cena política desde que fazia parte da gangue de Fernando Collor. Se com todas as acusações contra ele segue com todo esse poder, é porque é útil, e eficiente para o que se espera dele.
Renan fará de tudo para aprovar os projetos de lei, as "reformas" que interessam para essa gente toda. A lei que anistia os políticos eleitos com dinheiro sujo; a lei que quebra as pernas da Lava-Jato; a lei que imporá o maior arrocho do planeta; a lei que destrói a aposentadoria do povão, mas mantém os privilégios dos juízes, dos militares e políticos; a lei que perdoa as dívidas das empresas; e por aí segue.
E a lei? E a Constituição, as instituições, as regras? Elas são importantes quando são importantes para esse grupinho de poderosos. Quando a lei não atende a elite, ignore-se a lei. E é por isso que Renan Calheiros pode simplesmente se recusar a obedecer uma decisão do Supremo; que a mesa do Senado assina embaixo da rebeldia de Renan. No Brasil, ordem judicial é pra ser obedecida - mas só quando o criminoso é pobrinho e escurinho, ou quando está atrapalhando a roubalheira dos bandidões.
Então foi costurado um grande acordão em favor de Renan. O que está por trás de tanto apoio a ele?
Os super-ricos brasileiros possuem um patrimônio de R$ 1,2 trilhão. Isso é 22,7% de toda a riqueza declarada por todos os contribuintes do Brasil. Essas 71.440 pessoas têm renda anual média de R$ 4.17 milhões, uns R$ 350 mil por mês. Tiveram em 2013, ano analisado pela pesquisa do IPEA que melhor radiografou essa elite, um rendimento conjunto de R$ 298 bilhões.
Qual o negócio mais lucrativo e seguro do Brasil? Emprestar dinheiro para o governo, que paga juros altíssimos para financiar sua dívida. Dinheiro que vem do Tesouro Nacional, dos impostos que todos os brasileiros pagam. Se o dinheiro está apertado, é fundamental aprovar leis que tirem mais dinheiro dos pobres para transferir para os bilionários. E é isso que está acontecendo desde 2014, quando Dilma colocou Levy no Ministério da Fazenda, um representante dos bancos. Dilma arrochou a população, mas não entregou tanto a rapadura quanto os endinheirados queriam; sem apoio popular, fraca, foi trocada sem maiores escrúpulos por equipe mais amigável ao mercado, que assumiu com compromisso de "restaurar a confiança".
Seis meses depois, estamos todos em situação muito pior. O tratamento está matando o paciente, porque arrocho não é remédio, é veneno. Com os cofres públicos esvaziando, a prioridade número um da elite nesse momento é que o Congresso aprove novas leis que garantam que seus rendimentos continuem gigantescos.
Faltou dizer que sem Renan, fica difícil Temer entregar tudo isso na velocidade esperada. E se não entrega, o governo perde o resto de apoio que tem. Temer pode ser substituído, via eleição indireta em 2017. Ou pode até ficar, mas sem apitar. Já está nas manchetes a pressão do "mercado" para Temer substituir sua equipe econômica por um time ainda mais duro. Que imponha um arrocho ainda mais brutal, capitaneado por Armínio Fraga ou alguém que ele indique.
Necessário ressaltar que todo esse papo de ajuste só atinge da classe média para baixo. E que todas essas leis poupam os super-ricos brasileiros, os 0,5% da população que ganham mais de 160 salários mínimos por mês. Talvez você não saiba, mas essas pessoas pagam só 6,51% de sua renda de imposto de renda. Você leu certo. Um assalariado que ganhe R$ 5 mil por mês paga 27,5% de imposto de renda. A elite paga 6,51%, como demonstra o recente estudo do IPEA que melhor radiografa nossa elite. A explicação é que 65,8% da renda total desses super-ricos são rendimentos considerados isentos e não-tributáveis pela legislação brasileira. É o caso dos dividendos e lucros.
Na prática, o imposto de renda aqui só é progressivo do pobre até a classe média, que é justamente a fatia da população que mais paga imposto de renda. É uma receita perfeita para aumentar cada vez mais a desigualdade social, a ignorância e a violência. Todos os países decentes, sejam ricos ou emergentes, tributam todos os rendimentos das pessoas físicas. Não interessa se a renda do salário, de aluguel ou de dividendos. É o justo. É o mais eficiente para o bom funcionamento dos países.
O estudo do IPEA não captura com precisão absoluta a pirâmide social brasileira. Não dá conta de dinheiro escamoteado, de caixa 2 ou remessas enviadas ao exterior. Mas já dá uma noção do tamanho do escândalo. E como é focado no Imposto de Renda, não leva em consideração outra grande injustiça do nosso sistema tributário, que são os impostos indiretos no consumo de produtos, que pesam muito mais para o pobre.
Enfrentar a elite é garantia que você vai ser chamado de irresponsável, baderneiro. Por quê o Supremo peitaria este consenso que tanto compensa, e assumiria o pesado ônus de colocar em risco a aprovação das "reformas"? O executivo pensa que é o Brasil; o legislativo pensa que é o Brasil; o judiciário pensa que é o Brasil; a elite pensa que é o Brasil; e que o Brasil precisa de Renan, dos Renans.
Estão errados. O projeto neoliberal mundial morreu em 2008, mas os zumbis do fundamentalismo financeiro seguem por aí, tentando nos devorar. É imoral e improdutivo continuar enriquecendo 0,5% com o dinheiro dos impostos dos 99,5%. Enfrentar os privilégios dos super-ricos é a pauta política e econômica fundamental de hoje e dos próximos anos. O resto é resto. Mas eles jogam o jogo pra ganhar, sem se importar com as regras, como assistimos em Brasília; e eles estão unidos, e nós não. Por enquanto.
* André Forastieri é jornalista e crítico de cinema. Texto publicado originalmente no site www.r7.com, no dia 07/12/2016. |