Documento sem título






     Artigos




  00/00/0000 - por Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo



Data: 19/09/2016

A medida, que limita os gastos públicos por 20 anos, consagra o Brasil como paraíso dos rentistas

Figura no panteão dos anúncios da equipe econômica do governo a Proposta de Emenda à Constituição para instituir o Novo Regime Fiscal, a PEC 241.

Em síntese, o “novo regime fiscal” pretende fixar limite à despesa primária dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício e pelos próximos 20 anos.

Para 2017, o limite será equivalente à despesa primária realizada neste ano corrigida pelo IPCA. Daí em diante, será definido pelo valor limite do ano imediatamente anterior corrigido pelo índice de inflação.
 
A nova métrica do “equilíbrio fiscal” busca impedir o crescimento real do gasto primário de um ano para o outro. Sua ampliação será no máximo igual à inflação do ano anterior, ou seja, concedida apenas a atualização monetária.
Como o PIB varia não só pela inflação, que majora seu valor nominal, mas também pelo aumento de todos os bens e serviços produzidos no País, salvo casos de deflação e recessão, a defasagem na taxa de expansão da despesa primária provocará a perda da sua participação relativa, decorrente de um crescimento inferior ao PIB.

O texto da PEC ressalta suas expectativas: “Estabilizar a despesa primária, como instrumento para conter a dívida pública... Entre outros benefícios a implantação dessa medida... reduzirá o risco-País e, assim, abrirá espaço para redução estrutural da taxa de juros”.

Há quase 20 anos, o advento do superávit primário estava prenhe da mesma esperança. De lá para cá a economia brasileira exibiu ao longo de 16 anos (1998 a 2013) superávits primários, o que não impediu o salto da dívida bruta do setor público do patamar de 40%, em 1998, para quase 58% do PIB, em 2013, acompanhada da elevação de 6% na carga fiscal, também medida em relação ao PIB.

Dizem os sabichões que a taxa de juro é elevada por causa do estoque da dívida, mas o caso brasileiro parece afirmar que a dinâmica da dívida é perversa em razão da taxa de juro de agiota. Mesmo em 2015, o ano da desgraça fiscal, 82% do déficit nominal que engordou a dívida bruta foram gerados pelos juros nominais. Em vez de confirmarem as hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros, os dados apontam a patologia da economia brasileira.

Os resultados primários informados pelo FMI tampouco oferecem amparo às hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros. Para evitarmos embates metodológicos acerca de defasagens temporais entre causa e efeito, utilizaremos uma singela média dos resultados primários de 2007 a 2015 para uma amostra de países.
 
Rússia, Índia, China, México, Estados Unidos, Reino Unido e Japão apresentam média deficitária (déficit primário), enquanto Chile, Alemanha, Turquia e Brasil apresentam média superavitária (superávit primário) no mesmo período.

O Japão, que figura há tempos entre as menores taxas de juro do mundo, apresenta o pior resultado fiscal entre os países, com um déficit primário médio no período em torno de 6,5%. O México exibe déficit primário médio de 0,8% do PIB e pratica juros de 4,25%, já a Turquia com quase 1,3% de superávit médio sustenta juros de 7,5%.
 
O Brasil, com a maior média de superávit primário entre 2007 e 2015 dentre os países listados (pasmem!), quase 2% do PIB, exibe exuberantes 14,25% de taxa Selic, revertendo quase 10% do PIB aos detentores da dívida pública, que representa menos de 70% do PIB, enquanto a Grécia, que tem uma relação dívida/PIB de 170%, despende aproximadamente 5% do seu PIB com juros.

No mundo da finança globalizada, demarcado pela hierarquia entre as moedas, a descuidada abertura da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas “internas” à busca de condições atraentes para os capitais em livre movimento. Esse é o ponto central e inalcançável aos leitores de manuais papai-mamãe.
 
Surpreendentemente, o texto de proposição do “Novo Regime Fiscal” apresenta, no entanto, oposição e crítica explícita à pedra angular da Lei de Responsabilidade Fiscal, concomitantemente ao reconhecimento do seu caráter pró-cíclico:

“O atual quadro constitucional e legal também faz com que a despesa pública seja prócíclica, quer dizer, a despesa tende a crescer quando a economia cresce e vice-versa. O governo, em vez de atuar como estabilizador das altas e baixas do ciclo econômico, contribui para acentuar a volatilidade da economia: estimula a economia quando ela já está crescendo e é obrigado a fazer ajuste fiscal quando ela está em recessão... Também tem caráter prócíclico a estratégia de usar a meta de resultados primários como âncora da política fiscal... o Novo Regime Fiscal será anticíclico: uma trajetória real constante para os gastos associada a uma receita variando com o ciclo resultarão em maiores poupanças nos momentos de expansão e menores superávits em momentos de recessão. Essa é a essência de um regime fiscal anticíclico.”

Gunnar Myrdal foi pioneiro na preocupação em estabelecer uma política fiscal capaz de suavizar as flutuações econômicas. Sua proposta apoiava-se em estímulos fiscais durante o período de retração e, simetricamente, medidas restritivas durante a expansão, contendo pressões inflacionárias e garantindo uma transição suave da parte descendente do ciclo. No entanto, sua proposta permitia ao governo equilibrar o Orçamento durante todo o ciclo econômico, em vez de considerá-lo ano a ano.

Apesar de assemelhar-se à proposta posterior de John Maynard Keynes para um Orçamento de capital, Myrdal, em 1930, via o investimento público como uma linha de defesa contra flutuações cíclicas, a ser ativada tão somente quando as circunstâncias assim determinarem. Recomendava, portanto, intervenções pontuais de curto prazo.

A ideia de Keynes, por contraposição, é formulada como um projeto de longo prazo. Propunha a “socialização do investimento” em companhia de um sistema tributário progressivo, a eutanásia do rentista e o controle do movimento internacional de capitais para prevenir a instabilidade. Entre outras coisas, Keynes pretendia neutralizar os desvarios da finança nacional e internacional. Sua proposta jamais foi implementada, nem sequer ensaiada.

As propostas de Myrdal e Keynes sustentam em comum a regência de custeio e investimento por métricas distintas. A imposição de um limite linear e genérico às despesas primárias, como consta na PEC 241, pode deteriorar ainda mais a qualidade do gasto público.
 
Historicamente as despesas com atividades-meio e custeio apresentam tendência mais autônoma de crescimento. Por exclusão, os investimentos assumem o papel de despesas discricionárias. Os investimentos, já baixos e insuficientes, podem ser comprimidos ainda mais com a imposição de um limite genérico. Um regime fiscal que se pretende anticíclico necessariamente deve enfrentar a composição das despesas primárias.

A abordagem do Orçamento camuflada em uma áurea exclusivamente técnica e científica delegável às burocracias não eleitas transformou-se em ferramenta para limitar a disponibilidade de políticas que pareçam viáveis para a comunidade.

O Orçamento é um pilar do Estado Social, expressão da confiança ética construída a ferro e fogo pelos subalternos, que impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, a partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com suas condições de trabalho e com sua velhice.

A imposição de limites cada vez mais restritos às despesas com serviços essenciais, enquanto juros podem exorbitar livremente, sinaliza simultaneamente credibilidade ao rentismo e temor à população de moratória ao contrato social.
 
*Publicado originalmente na edição 918 de CartaCapital, com o título "A moratória do contrato social".

Fonte: Carta Capital



Galeria de Fotos