Data: 24/04/2017
01. Na obra “Dialética Negativa” Theodor Adorno assinala a inexistência de um progresso que, em linha reta, conduza a humanidade da barbárie à civilização. Quando se trata, no entanto, da civilização presidida pelo sociometabolismo predatório do sistema do capital - este que transforma os poderes do Estado brasileiro num mero comitê a zelosamente cuidar dos interesses da grande burguesia -, aí, sim, para seguir a linha do raciocínio adorniano, temos a certeza de que há uma linha reta que vai do estilingue à bomba atômica. No Brasil, a linha reta da barbárie acelera seu percurso devastador. A regressão social avança e conquista, sempre aquém do mínimo civilizacional - diga-se -, que pareciam sólidas se liquefazem em velocidade para além do que poderia captar a acuidade analítica do velho e saudoso Bauman. Tudo se perde por antecipação. Em recente entrevista televisiva o ex-ministro e ex-presidente do STF, Carlos Ayres Britto, alertava que “o Estado não pode recuar no campo social”.
02. O que o Estado brasileiro trama nessa quadra de desmonte de direitos encontra sua materialização mais perversa e desumana (não poderia mesmo configurar um crime de lesa-humanidade?) na proposta em curso de contrarreforma previdenciária, combinada, e em curso avançado, à contrarreforma trabalhista. Os indicadores da predominante baixa política praticada nas altas cúpulas, entre copos, cópulas e fumus de malis iuris, apontam para o desaparecimento no horizonte da expectativa de decência. A Hegel e Marx urge então completar: primeiro como tragédia, depois como farsa, e agora como escárnio desinibido. Cinismo da mais abjeta extração. Sob signo do engodo publicitário financiado pelo erário em mãos de rapina vende-se a mercadoria podre da “reforma inadiável” da Previdência sob chantagem do déficit insustentável. Arma-se a arquitetura da destruição. De FHC a Temer o golpe aos direitos de aposentadoria decente avança em intensidade de abrangência sobre a vida da classe que vive do trabalho.
03. O Brasil do século XXI regride aos patamares pré-Comuna de Paris de 1871, ano em que na primeira e paradigmática experiência de governo operário da história se constituiu um modelo previdenciário de natureza social, fundado na solidariedade de classe e no pacto geracional. Vastos setores da classe dominante se unem para rasgar o que formalmente assegura a Constituição de 1988. Mata-se a letra para interromper o necessário e duro caminho rumo à vida. Fazem o país regredir à época pré-kantiana, no século XVIII. Em célebre texto de 1783, Kant denunciava como crime de lesa-natureza uma geração conspirar para subtrair à geração seguinte o sagrado direito ao esclarecimento. O crime do crime se alimenta. O Estado que trama contra o esclarecimento é o mesmo que mantém rebaixadas as expectativas de direito. Manter o povo bestializado é condição para imprimir-lhe na consciência o mutismo e nele naturalizar as desigualdades.
04. A contrarreforma da Previdencia em curso, de uma Previdência ela mesma já tão desonesta quanto a educação pública brasileira, é o prenúncio de um golpe de misericórdia sobre a vida de um povo tratado sob permanente espoliação e sob o tacão da mais boçal das elites entre as elites que dão as cartas na jogatina do financismo global. O que se faz no andar de cima não merece o estatuto de política. Não há política digna desse nome quando são frontalmente agredidos “os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CFB, Art. 3º). A tese da irrelevância da política há algum tempo anunciada pelo sociólogo Francisco de Oliveira continua na ordem do dia e cada vez mais enredada por figuras irrelevantes.
05. O povo brasileiro encontra-se diante de um crime anunciado que outro termo não cabe senão o de lesa-humanidade. E pior, perpetrado sob capa institucional de uma institucionalidade em franca decomposição. E tragédia maior é a não percepção política das consequências sociais dessa tragédia. É de domínio mais que público que parte não insignificante do Congresso se desdobra no trabalho sujo de rasgar a Constituição de 1988, inclusive e com desinibido escárnio tratando de conferir constitucionalidade ao “ajuste”. Eles deveriam estar atrás das grades, nunca no Parlamento. Quem poderá nos defender dos nossos tão solícitos “defensores representativos”? O apelo à luta de classes parece incontornável, mas parte não menor dos partidos que se reclamavam de esquerda abandonou o método. Isso faz lembrar a parábola brechtiana do lobo e da galinha. Quanto custa colaborar? Convidadas a ir ter com o lobo, foram as galinhas. Conclui Brecht: “por isso há tantas penas espalhadas no campo”.
06. Diante do desmonte, planejado e já a passos largos, que se materializa nas contrarreformas trabalhista e previdenciária não haverá possibilidade de resistência fora do método da luta de classes. Somente a luta cria consciência. Consciência de classe não se desenvolve por geração espontânea. Sem o trabalho político, paciente, pedagógico, epistemológico de organização e consciência da classe, nunca haverá consciência de classe. Combater a contrarreforma, desmontar a base falaciosa de sua justificativa, é tarefa da classe trabalhadora. A rua é o parlamento da classe. Do contrário, prevalecerão, e bem combinados, agentes “organizadores” do povo. Forças midiático-religiosas têm meios e sabem como fazê-lo. Se os que ainda cultivam e prezam por um mínimo de bom senso, ético e político, permanecerem calados e omissos, obrigarão as pedras - mesmo desnecessitadas de Previdência que são - a tomar a palavra e a ação.
José Alcimar de Oliveira, ex-presidente da ADUA, é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe.
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