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  25/06/2019 - por Luiz Fernando Souza Santos



Vivemos uma época de crise profunda do capital na qual as escolhas políticas invariavelmente têm se desdobrado em barbárie. Em vários centros de estudos pelo Planeta, particularmente entre os anglófonos, há uma proliferação de pesquisas em torno da tirania. Tirania dos modernos, dos clichês, da métrica, das formas políticas. Em tal contexto, a relação entre senso comum e fatos testados cientificamente, submetidos ao rigor da investigação acadêmica, estão sendo solapados por um ambiente de pós-verdade em que a racionalidade e a ciência são rejeitadas. Num contexto assim, precisamos falar sobre autonomia universitária.

Em escala planetária o sinal de alerta foi disparado. Ao lado das fake news proliferam as fake sciences, que negam as mudanças climáticas, o Holocausto; que dão suporte para terraplanista, criacionistas e movimentos antivacina; que na análise política rejeitam qualquer premissa em torno da objetividade da análise dos fatos que agora tornaram-se uma “questão de perspectiva e agenda política”, conforme apontou Michiko Kakutani citando David Foster Wallace em A Morte da Verdade (2018).

Em 2017, tendo como oponente as políticas do governo Trump de corte no orçamento para a Ciência & Tecnologia e de defesa de premissas das fake sciences, foi organizada nos Estados Unidos a primeira Marcha pela Ciência que, em 22 de abril do mesmo ano, ocorreu em 610 cidades ao redor do Planeta, 25 delas no Brasil.
Esse contexto mais geral, ao nos reportarmos ao caso brasileiro, deve ser matizado com as condições sócio-históricas estruturais de formação do sistema de ensino superior no país. Além disso, há que se considerar a multiplicidade discursiva na disputa de campo pela definição do sentido de autonomia universitária e o que está posto efetivamente para a relização material desta. Nos limites deste texto, me limitarei a explorar esta última dimensão do tema.

Assumo no presente artigo entender por autonomia universitária uma disposição cultural e política que compreende que a produção de conhecimento através do ensino e pesquisa implica na liberdade de pensamento, na liberdade de cátedra, que não imponha amarras ideológicas, morais, religiosas, de poder político e outros. Vale lembrar que, no Brasil, a autonomia universitária foi assegurada como princípio constitucional na Carta Magna de 1998 e que, em torno dessa, nas últimas três décadas se desenvolveu uma batalha dura entre diversos campos.

Num texto intitulado Autonomia Universitária – extensão e limites, Eunice F. Durham aponta a existência do “mito da universidade”, que se assenta na ideia de uma universidade pública, gratuita, que articula ensino, pesquisa e extensão e busca a defesa da autogestão democrática. Para além desse “mito” existem, segundo a autora, outras experiências de universidade brasileira que compreendem o setor privado de ensino superior público e suas múltiplas formas institucionais. A autora defende que, definir a partir do “mito da universidade” a autonomia universitária, seria reduzir os modos diversos em que esta se realiza, conforme o caso. A autonomia universitária é, assim, relativa.
   
Mas, vale ressaltar, a perspectiva que reivindica um olhar relativista é um componente basilar no contexto de produção de pós-verdades e, no caso aqui em foco, de fake sciences, que, ao fim e ao cabo, resultam numa lógica gerencial de cortes de recursos para o ensino, pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Considero que a arguição de Durham serve de argamassa ideológica para o desmonte do sistema de ensino superior público brasileiro. É parte de uma estratégia que Phellipe Marcel da Silva Esteves e Bruno Deusdará, em A Polissemia da Fórmula “Autonomia Universitária” (2018), apontam tratar-se de uma desresponsabilização da esfera estatal em garantir a efetiva autonomia da universidade pública, o que foi levado a cabo por uma série de medidas que, já com Fernando Henrique Cardoso, transferiram recursos públicos para o ensino superior privado e comprometeram o financiamento daquela outra e sua autonomia.

No Artigo 207, a Constituição Federal estabelece um marco para a autonomia universitária, a saber: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Em três décadas, este princípio da autonomia foi sistematicamente desmontado por decretos, medidas provisórias, marcos regulatórios diversos que aprofundaram a desresponsabilização do Estado.

Esse processo de desresponsabilização com a autonomia universitária tem início antes da crise econômica e política que resultaram num governo de extrema-direita. Todavia, com Bolsonaro, esse processo se acelera e aprofunda. A Universidade está sob ataque. A liberdade de cátedra, o pensar crítico, são furiosamente negados pelo governo, seus seguidores e o exército de bots que disparam mentiras sobre o universo acadêmico nas redes sociais.
 
Um conjunto destrutivo da autonomia universitária é avançado desde o primeiro dia do governo de Bolsonaro. O corte de recursos para o financiamento das atividades acadêmicas na ordem de 30%, que atingem ensino, pesquisa e extensão, posto que inviabilizam bolsas da graduação à pós-graduação, serviços de segurança, limpeza, entre outros, é a face, o primeiro momento, do desmonte da autonomia. Outro momento, o anúncio, pelo Ministro da Educação, de estudo para retirar recursos do ensino de Filosofia e Sociologia para destiná-los à áreas mais técnicas, é menos expressão de um cálculo fundamentalmente técnico e mais o produto de uma disposição anti-intelectual, contrária à liberdade de cátedra, por um governo que se alimenta de uma legitimidade cativa de irracionalismos.

E, o terceiro momento do ataque à autonomia universitária se expressa no solapamento de suas instâncias de tomada de decisão. Por um lado, o Decreto 9.794, de 14 de maio de 2019, retira das reitorias a autonomia para nomear o segundo escalão da administração superior. Por outro, como ficou exposto no processo de escolha do Reitor da UFGD, o governo desrespeitou a lista tríplice enviada ao MEC, escolhendo uma interventora temporária que sequer participou como candidata na consulta à comunidade acadêmica.

Pelo exposto, precisamos, sim, falar de autonomia universitária. E desdobrar essa fala num movimento constante de mobilização em defesa da Universidade. As manifestações em defesa da eduscação que ocorreram no dia 15 e 30 de maio do corrente ano, e que tomaram as ruas das capitais e de centenas de cidades do país, indicaram o caminho da resistência, da presença nas ruas para barrar o ataque ao universo acadêmico brasileiro.



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