Data: 30/05/2016
Um espectro irracional e reacionário ronda o sistema estadual de educação no Amazonas. É um projeto de Lei do Deputado Platiny Soares (DEM), que institui o Programa Escola Sem Partido, um amontoado de preceitos que os movimentos sociais alcunharam por “Lei da Mordaça”. Neste texto, pretendo fazer algumas observações críticas às linhas gerais da proposta. Como o deputado tem defendido que seu projeto não é uma mordaça, mas que visa garantir que as diversas perspectivas de análise sejam consideradas sobre os fenômenos sociais abordados em sala de aula, seguirei sua argumentação e apresentarei minhas notações críticas a partir das principais correntes teórico-epistemológicas clássicas das ciências sociais.
Na obra ‘As Regras do Método Sociológico’, Émile Durkheim aponta que os pensadores que o antecederam na reflexão sobre a vida social (Stuart Mill, Comte e Spencer) partiram de exercícios de reflexão desprovidos de método, o que os levou a produzirem ilusões, generalizações frágeis a partir de correlações sem bases sólidas entre a vida social e o mundo biológico. Nesses autores, Durkheim identifica o domínio da indeterminação metodológica como princípio. Sua crítica lançará as bases da investigação sociológica moderna. Ora, aqui cumpre observar que, qualquer um dos três autores criticados por Durkheim, ainda que marcados pela indeterminação metodológica, produziram trabalhos sobre a vida social infinitamente superiores às toscas referências que o Projeto de Lei, do Deputado Estadual Platini Soares, faz a determinadas dimensões do ser social.
O Projeto de Lei inicia por referência a princípios expressos por um amontoado de indeterminações: “neutralidade político, ideológica e religiosa do Estado”, “liberdade de consciência e de crença”, “liberdade de ensinar e de aprender”, “reconhecimento da vulnerabilidade do educando”, “educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença”, “direito dos pais a que seus filhos não recebam a educação moral divergente de suas próprias convicções”. Um conjunto discursivo que, no âmbito estrito do Direito, não se sustenta por ser difuso, escorregadio, sem objetividade. Um conjunto discursivo traiçoeiro, pois despreza qualquer ancoragem filosófica, das ciências sociais e da história. Um conjunto discursivo que aposta na irracionalidade para legitimar-se.
A “neutralidade” proposta por tais princípios é uma quimera. Possivelmente o Deputado não sabe que o sociólogo alemão Max Weber, ao enfrentar a questão da neutralidade axiológica na intepretação da ação social, já a apresentou entre aspas, pois sabia que a construção dos objetos da reflexão passa pelo cálculo valorativo de quem reflete. A neutralidade que o deputado propõe corresponde àquela segundo os interesses de sua visão de mundo, a sua razão lacaia. E após Maquiavel, Engels, Marx, Lênin, Lukács, soaria risível a referência à “neutralidade política” se não soubéssemos que ela se desdobra numa cínica tentativa de calar os professores e o pensamento crítico em sala de aula e submetê-los à lógica de exploração dos mesmos grupos políticos que devassam as riquezas naturais e a força de trabalho no Amazonas de forma destrutiva.
A “liberdade” é duramente enxovalhada por esta proposta. Todo esforço que o pensamento iluminista desenvolveu em torno da mesma é aí esvaziado. Nem como caricatura ela se aproxima da “liberdade” como palavra que embalou a maior revolução política burguesa, a Revolução Francesa. A referência à liberdade é um recurso tosco para castrá-la, para interditá-la. É, pois, uma não-liberdade.
A expressão “vulnerabilidade do educando” parece ter saído de um manual de horror. Basta lembrarmos de Michel Foucault, em ‘Vigiar e Punir’ ou nos artigos em ‘Microfísica do Poder’, para compreendermos que esse é um artifício para disciplinar, docilizar, os corpos e os espíritos dos jovens estudantes; ou então, se considerarmos as notas de Karl Marx, em ‘O Capital’, sobre os filhos dos trabalhadores e órfãos e como seus corpos e mentes tinham que se curvar à anatomia da máquina na indústria, para intuirmos que trata-se de um artifício para reduzi-los a objetos a serem explorados e sugados até à última gota de energia vital em frentes de trabalho precarizado. Um recurso que deve ser compreendido no contexto de ascensão da juventude ao palco das lutas políticas nas ruas das grandes metrópoles. Após o levante da juventude por todo o mundo, nas jornadas de junho de 2013, nas ocupações de escolas, em defesa do passe livre, contra a privatização da educação, contra o roubo da merenda escolar, etc., recorre-se à construção da narrativa da “vulnerabilidade”.
O princípio VII do projeto de Lei, “Direito dos pais a que seus filhos não recebam a educação moral divergente de suas próprias convicções”, tem ecos de uma razão assaltada, limitada à reprodução de uma estrutura social autoritária com os subalternos da nação e dependente e submissa no interior do movimento do capitalismo mundial. É um princípio típico daqueles que ignoram o pensamento de Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Florestan Fernandes, entre outros que pensaram a formação da sociedade brasileira. Um princípio que naturaliza o que é propriamente dinâmico, que se aferra às disposições arcaicas e arcaizantes da moral e da família, bem como do espírito submisso ao mandonismo. Houvesse o formulador do Projeto de Lei entrado em contato com um texto de Karl Mannheim intitulado ‘The Conservantive Thoughte’ saberia que essa é uma proposta de um conservadorismo rebaixado, que não se modernizou ao ponto de ser efetivamente propositivo face às transformações da vida moderna. O seu impulso básico é uma lógica assentada numa ultrapassada e irracional moral patriarcal que pode condenar as sociedades locais à miserável dialética do freguês e do patrão dos velhos barracões dos seringais ao mesmo tempo em que o capital entra numa fase de acumulação na qual a totalidade dos recursos naturais da Amazônia são alçados à condição de mercadoria.
O parágrafo único desse conjunto de princípios é de uma indeterminação, pobreza conceitual e ódio à heterogeneidade humana assustadores: faz referência a um “desenvolvimento natural” da personalidade e a uma tal “identidade biológica de sexo” para propor a rejeição nas escolas da “aplicação dos postulados da ideologia de gênero”. Somente numa época racionalmente decadente, em que a conduta na esfera pública passa a se guiar por fórmulas baratas cunhadas nos ambientes mais preconceituosos, é que uma proposição dessa pode se arvorar à condição de projeto de lei. De novo, Émile Durkheim a rejeitaria pela apressada confusão que faz entre a esfera biológica e a esfera social. Canguilhem e Foucault veriam aí manifestações de uma engrenagem biologizante, que se utiliza da oposição entre o normal e o patológico para introduzir regimes disciplinares assentados em engrenagens de produção de um “eu” docilizado. Ao fim e ao cabo, essa é uma desprezível tacada para reduzir o ambiente escolar a uma lógica sombria de despolitização, machista, homofóbica, misógina e referida a valores desumanizadores.
O restante do projeto de lei, que tem ao todo oito artigos, são variações obre uma lógica policialesca, uma espécie de Caveirão Jurídico. Como o Caveirão – o carro blindado da Polícia Militar do Rio de Janeiro utilizado em operações nos morros nos quais sempre sobram vítimas de balas perdidas – essa proposta pretende invadir o sistema educacional do Estado do Amazonas e instalar um Estado de exceção. O assalto à razão, para fazer referência a uma obra magistral de Lukács, se dará em diversas frentes: no conteúdo dos livros escolares, nas propostas curriculares, nas arguições dos professores em sala de aula, nas provas de concurso público para a carreira docente, nas provas de ingresso ao ensino superior estadual. O Caveirão Jurídico pretende reduzir a escola a uma instituição conforme os padrões das instituições prisionais. E o ofício do professor passa a ser monitorado como uma atividade criminalizada, subversiva, perigosa, passível de ser submetida ao Ministério Público se exercida em discordância com os termos do irracionalismo do Programa Escola Sem Partido.
O Caveirão Jurídico instala, de fato, um Estado de exceção nas escolas, pois a única referência legal que reconhece é a si próprio. Os princípios presentes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), assentados na observação do exercício da tolerância, da liberdade de pensamento, do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, são completamente distorcidos ou ignorados.
Face a esse ataque frontal ao sistema educacional do Amazonas, é mister que as associações e sindicatos docentes, movimentos estudantis, sociais, populares, parlamentares que não compactuam com essa empreitada irracional, partidos políticos, instituições de ensino e pesquisa do Estado, entre outros, construam estratégias de desmonte dessa proposta. O avanço desse Caveirão Jurídico tem balas “perdidas” com endereço certo: atingir o pensamento crítico, livre e autônomo e formar uma massa imobilizada ante a sanha desmedida das elites locais e dos estratos sociais mais reacionários. E a escola, assim, ficará reduzida a um ambiente cinzento, sem vida e alegria. Reivindiquemos a lógica da alegria no processo de busca do conhecimento como a assinalou Paulo Freire, em ‘Pedagogia da Autonomia’: A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria”.
* Luiz Fernando de Souza Santos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Ufam. |