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  07/05/2014 - por Renato Prata Biar



Desde a época da Velha República e seu último representante, pres. Washington Luís (1926-1930), a questão social, no Brasil, é teimosamente tratada como caso de polícia. Não por acaso, a função principal da polícia foi, é e será ainda, por um longo período, manter os pobres sob controle. Mantê-los no seu "devido lugar" (favelas, morros e periferias), evitando que os mesmos se revoltem e cobrem seus direitos e sua parte na riqueza por eles produzida, é a missão primordial das forças de repressão e coerção do Estado. Como já tive a oportunidade de escrever num outro artigo intitulado ‘A Criminalização da Pobreza’, essa repressão e essa coerção não podem, entretanto, serem aplicadas de qualquer forma. É necessário buscar um consenso na população para que tais ações tenham legitimidade e um ar de legalidade que acoberta os mais diversos assassinatos, torturas e todo o tipo de abuso de autoridade exercida pelos policiais. E nada melhor para justificar esse tipo de guerra do que a presença de "inimigos” armados e considerados como indivíduos de alta periculosidade. Desse modo:

"[...] o tráfico serve para justificar, legitimar e reproduzir a criminalidade da pobreza sendo, por isso, "permitido” que se refugie nos morros, favelas e periferias. Ser pobre num sistema capitalista e neoliberal é ser ilegal. Daí o tráfico, atividade ilegal, ter o seu refúgio na pobreza. Deixá-los armados e provocar confrontos constantes com essa minoria armada, concretiza a imagem de alta periculosidade e selvageria a todos aqueles que ali residem, naturalizando o consenso de que não há outra forma de combater o crime senão pelo enfrentamento e a execução desses bandidos. E, mesmo quando os assassinados são comprovadamente inocentes, ouvimos o secretário de segurança ou o próprio governador dizerem que isso foi um "efeito colateral”.” (A Criminalização da Pobreza)

Nesse sentido, o projeto das UPPs e a corja política e civil que o sustenta não estão trazendo nada de novo. Aliás, como outras tentativas do mesmo tipo, as UPPs já apresentam seus limites em tão pouco tempo de existência e mostram os sinais de esgotamento e sua verdadeira cara: não passam de um controle militar das localidades onde são instaladas. Podem anotar: o fim das UPPs está próximo. Mas isso não significa a desmilitarização desses territórios e muito menos a diminuição do índice de violência policial contra aquela população; muito pelo contrário. Ao que tudo indica, o mais eficiente modelo de (in)segurança pública para a contenção dos pobres será fechar os olhos de vez para as milícias. As áreas que são dominadas por milicianos são negociadas como verdadeiros feudos entre grupos de policiais, políticos e empresários. As milícias são mais "eficientes" porque fazem o trabalho sujo sem precisar de operações oficiais, mandados, grandes planejamentos e gastos exorbitantes com projetos públicos. Quando um miliciano comete um crime, o máximo de responsabilidade a que o Estado se propõe a assumir é o de investigar internamente quais são os policiais envolvidos com esses grupos paramilitares. O Estado se exime da responsabilidade do crime em si, pois tal "operação” não foi uma consequência de uma determinação legal por parte dele. Geograficamente teremos, portanto, um mar de lugares controlados de forma extremamente violenta por "senhores feudais" e algumas ilhas de "normalidade" onde a classe dominante poderá transitar com um pouco menos de preocupação e de medo em relação à sua própria segurança e, principalmente, em relação à segurança dos seus tão "sagrados" patrimônios e propriedades.

E, para uma melhor compreensão de tudo isso, existe um fato no qual devemos nos deter com mais atenção e acuidade. A existência de um enorme e considerável crescimento do efetivo policial (isso sem contar com o verdadeiro exército de seguranças do setor privado que já é maior do que todo o efetivo das polícias militar e civil juntas em todo o Brasil e das Guardas Municipais que estão sendo armadas no Rio de Janeiro e em diversos outros municípios Brasil afora). Só do ano de 2009 até o ano de 2014, o efetivo da Polícia Militar saltou de cerca de 47 mil homens/mulheres para cerca de 60 mil. Um aumento de mais de 20% do efetivo num período de cinco anos. O que me parece, portanto, é que temos aí algo que está sendo criado não como uma força de segurança pública no sentido de um Estado Democrático de Direito, mas algo como uma fração de classe aliada da burguesia para manter o status quo. Porém, e aí está o grande diferencial, sem respeitar os limites e a legalidade que, pelo menos em tese, uma força policial deveria se limitar. A moeda de troca oferecida pela classe dominante para ganhar a fidelidade dessa fração de classe são exatamente os territórios onde reside a maior parte da pobreza: favelas, morros e periferias. Essas localidades serão cada vez mais tratadas como propriedades da alta cúpula da polícia, onde os mesmos poderão explorar bens e serviços em detrimento do morador que ali reside. E, obviamente, como o poder e a autoridade dos policias depende diretamente da manutenção do Estado Burguês, estes não pensarão duas vezes antes de usar todos os meios, legais e ilegais, para manter de pé o instrumento que lhe proporciona privilégios e regalias inerentes a uma fração de classe que se descola da classe trabalhadora e se alia à classe dominante como um minimizador político das consequências do acirramento da luta de classes.

Quando o Estado burguês vai perdendo sua legitimidade diante deste inevitável recrudescimento da luta de classes, nada mais lhe resta do que manter um estado de sítio permanente, pois as leis, suas representações e seus atores principais já não mais possuem a autoridade ideológica que maquia os reais interesses que estão por trás da defesa da ordem vigente. Tal situação lhes deixa como uma das poucas alternativas de sobrevivência apenas o autoritarismo tosco e cru para tentar manter seus ignominiosos privilégios e concessões inerentes à sua condição de classe dominante. Quanto mais a burguesia vai ouvindo o barulho da pá proletária cavando a cova para ela reservada, mais violenta e mais disposta a arriscar a própria vida para garantir sua existência como classe exploradora ela vai se tornando. Que nós, trabalhadores, tenhamos disposição, inteligência e organização para efetuar de vez esse enterro sob o som de um belo réquiem.

Foto: Jornal do Brasil

* Renato Prata Biar é historiador. (Publicado originalmente no Adital, no dia 05.05.14)



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