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  25/03/2014 - por José Leal



Frente às querelas murmurantes, onde eu não mato minha sede, finalmente os sinistros mecanismos de manipulação entre realidade e ficção da ditadura militar, estão sendo desmascarados de forma contundente, e este processo se dimensiona diante dos cinquenta anos depois do Golpe Militar de 1964, que implantou a ditadura sanguinária que se manteve no poder 21 anos, sequestrando, prendendo e torturando milhares de companheiros e companheiras de luta, que hoje são sobreviventes deste arbítrio. Vinte um anos de uma ditadura militar que assassinou e manteve como desaparecidos centenas de combatentes em crimes de lesa-humanidade, que ainda não foram esclarecidos, nem julgados pela justiça do Brasil.

Justiça seja feita, lembrar e refletir sobre este período da história, é de suma importância para a fortalecer o processo democrático no Brasil, que requer da sociedade uma postura de luta constante para revelar e esclarecer as raízes da verdade sobre a realidade mantida como ficção pelo poder militar. Junto a isso, é imprescindível saber quais são os instrumentos e mecanismos do arbítrio que ainda continuam incorporados como herança malígna em nossa história atual? A contradição fundamental é a heriditariedade do sistema, que abordei como tema no artigo, - Aos Direitos Humanos com Afinco e Afeto –, publicado no Carta Maior e que aqui é retomado para revelar algumas raízes do macabra doutrina disseminada pela ditadura militar.

Um dos fundamentos desta contradição, é que a estrutura e superestrutrua do sistema capitalista, tendo o Estado como aliado dependente, realiza um grande jogo político maniqueista, que de um lado, edifica o sonho de crescimento da estrutura de seu império selvagem real, e de  outro lado, coloca a maioria do povo como objeto de controle, mantendo o seu sonho de bem estar social no plano da ficção. Assim é que, a superestrutura, que é a responsável geradora (de-)formação de ideias e conceitos, segue aprimorando seus instrumentos para perpetuar a dominação, garantir a hereditariedade do sistema de controle político dos sonhos do povo. Para isso, lança mão do instrumento de persuasão, desencorajando o pensar, estabelecendo uma seleção discriminatória de acesso ao saber, desestimula a reflexão crítica do contexto social, incentivando assim a letargia social. Com o instrumento do previlégio, ela controla a base do sistema educacional, aplicando seu programa de ensino à reflexão conivente, às inspirações ordeiras e a crítica conciliadora, como componentes fundamentais à elaboração do pensamento, e como elementos que regulam o jogo da concorrência que proporcina ascensão social deshumanizada como recompensa. 

Estes são alguns dos intrumentos que estimulam o princípio da corrupção do imaginário, que são mantidos no arquivo do controle político dos sonhos. E quantas ideias estão escondidas neste arquivo? Centenas, inclusive a ideia do jogo que batizou a moeda brasileira de Real, também está no estoque. Isso significa que, o acesso a um montande de Real que proporcione o bem da maioria da população, permanece no plano da ficção. Trocando em miudos, o sonho do povo tem que permanecer dentro do mundo da ficção, enquanto o Real é mantido na realidade, porém bem longe do povo, pra lá do além, além do infinito. Maquiavel gostaria de ver esta máquina de manipulação do sistema, demostrando o quanto o arsenal deste jogo é corrompido e perverso        
Entra em pauta a liberdade de expressão, protegida pela lei que permite as manifestações populares, mas na realidade elas têm sido alvo de brutais violências, como foi o caso das manifestações de 2013, que sofreram intensa repressão, com centenas de manifestantes espancados, presos, internados em hospitais, e que provocou quatro mortes. Os movimentos indígenas são reprimidos violentamente causando assassinatos de índios Kaiowa e segundo o CMI, nos últimos 20 anos foram assassinados 560 indígenas, o MST e outras organizações populares têm sido alvo de intensa repressão, a população negra, além de forte discriminação, sofre repressão redobrada. Fato é que, as lutas e ações populares são mantidas sob rígidos e violentos controles, e vem sendo criminalizadas. A reflexão sobre todas estas ações de repressão, nos leva a concluir que a lei que deveria garantir a liberdade de expressão é fictícia, mas a repressão contra a liberdade é real.

O uso do aparato militarizado reprimindo desenfreadamente as manifestações, tem o objetivo ideológico de implantar o medo junto ao povo, desencorajar as ideias de se organizar e desmobilizar ações para exigir a realização de seus anseios. Consequentemente, isso leva o povo a desconfiar das leis estabelecidas, das instituições estatais e nos agentes públicos. Assim, o que deveria ser respeito baseado no direito igualitário, transforma-se em medo frentre a tudo que demonstre poder, seja privado ou estatal. Pior ainda, o respeito e o direito passam a ser ficção, enquanto o medo é disseminado na realidade. Sobre o cumprimento das leis dos Direitos Humanos, encontra-se um reprimido sinal de existência, porque é apenas instrumento de apêndice, pois é megafictício, quase sobrenatural. E o que há de novo no rugir das tempestades políticos-sociais? Um pouco do quase nada, pois toda esta situação prova que a estrutura do estado brasileiro ainda mantem a concepção herdada da ditadura militar, que conserva o jogo entre ficção e realidade para perpetuar a dominação.

Faço aqui um parênteses, para registrar o quanto o jogo entre ficção e real é uma arma  sinistra essencial da doutrina e prática da repressão da ditadura militar. Exemplifico aqui, o período em que fui vítima dos sequestros em 1974 e 1975 pelo DOI-CODI, onde fiquei preso longo período, mantido nu, torturado e sempre com capuz. No dia em que decidiram me retirar das dependências do DOI-CODI, fui levado, também de capuz, à frente de um agente de comando que me exigiu textualmente:

 “Hoje você vai para casa e tenho a certeza que irá esquecer que esteve aqui e tudo que se passou. Pense bem e faça deste período uma folha em branco em sua vida. Melhor ainda, é você mentalizar que nunca esteve aqui, e que tudo foi mera ilusão sua. Este é único caminho, senão você terá problemas mais graves conosco. Podem leva-lo!”

Este exemplo sintetiza e demonstra a herança do jogo entre ficção e real da máquina repressiva, planejada com altos requintes de perversidade, onde o primeiro componente é de que, o indivíduo alvo da barbárie, deve permanecer de capuz sem saber onde está, e sem saber quem o torturou, para mascarar toda a história de atos cometidos por eles. É a garantia do sigilo e da catarze de isenção de culpa dos torturadores e da uma estrutura que mascara a verdade. Evidente, que toda tortura praticada, foi violência fisica e psíquica cometida contra uma pessoa e suas ideias políticas, que assim expressa o ódio contra o pensar coletivo, contra qualquer pessoa que sinalize a ideia de manifestação de luta da sociedade. E a máquina repressiva arbitrária comete ações de tortura contra indivíduos desprovidos de qualquer direito, porque eles incorporam o direito em si, e assim livram-se da culpa, fazendo a macabra transferência de responsalidade de tudo que cometeram. Transladam para o indvíduo o sentimento de culpa e de autopunição como vítima de suas próprias paixões ideológicas, e assim imputam todo o contra-senso para o plano imaginário do indivíduo. Eis que o capuz adquire o valor corrosivo da autoestima, pois tudo deve permancer escondido dentro dele e, o capuz é de propriedade dos toturadores e é mantido sob a guarda deles em local secreto. É exatamente este o aspecto sinistro estimulando a resignação, a autopunição e bombardeando a autoestima e estes são os fios que confeccionam o capuz social da dominação, repressão e tortura, com o qual tentam encobrir o dia a dia do povo. Infelizmente, esta herança de ação macabra está comprovada na situação real em que o povo ainda vive, sob a tortura da fome, violência, do direito estabelecido como ordem da desigualdade, vítima do arbítrio e desrespeito, mas que devem ser mantidos como autopunição. O pior é que, sem a transformação deste sistema terrorista herdado da ditadura militar, não só garante a  continuidade sádica deste jogo, como mantem aberta a  possibilidade dos herdeiros da doutrina do arbítrio terem acesso e de permanecerem contaminando os órgaos do estado.

Fazendo frente a isso, os movimentos populares permanecem na lutar para realizar e consolidar os Direitos Humanos, a liberdade e a democracia no Brasil. Desta forma, eles erguem-se com forte esperança nas ruas, dando sua enérgica resposta aos cinquenta anos do Golpe. Esta resposta vêm sendo dada por organizações populares através de incessantes lutas há longo tempo, que somam--se às manifestações de ruas dos últimos anos, mostrando os participantes escancarando suas faces para desmascarar a face dupla escondida na hereditariedade do sistema. Existem claros sinais de que os movimentos populares já perderam a credibilidade nas instituições e proclamam transformações efetivas na estrutura do poder. Refiro-me às manifestações sem a disvirtuada presença das figuras mascaradas, ou fantasiadas de heróis fictícios - Black Blocs -, que incorporam e usam os mesmos métodos de não mostrar a face, de esconder sua identidade diante dos fatos que cometem e, desta forma reproduzem a mesma tática de violência herdada da ditadura militar e de seus agentes, fortalecendo assim a máquina repressiva do controle político dos sonhos.

Mostrando seu discernimento, os movimentos populares, estão agregando novos valôres às suas demandas, que vêm se ampliando, vêm transformando à luta meramente revindicatória, e dando um caráter político geral e real contra o atual projeto político-social brasileiro. Estão realizando uma mudança qualitativa no processo de luta, pois mostram-se decididos a fazer transformação e não mudança, baseados em seus programas político-sociais e econômicos concretos. Entre várias iniciativas, vide o potencial do - Movimento Plebiscito Constituinte -, que conta com a participação de cerca de 70 entidades com significativa representatividade popular em todo o Brasil. Tudo indica que o sonho não acabou, e o que precisa ser extinto é o controle político dos sonhos. Há claros sinais de que o jogo do país do futuro, está sendo remetido às ruinas, aos silos do passado, pois os movimentos populares demonstram-se decididos a plantar e usufruir o fruto do futuro no presente canteiro.

E neste processo, os movimentos populares ainda terão que travar intensas lutas para transformar o sistema que não quer ver que a questão da corrupção começa pelo imaginário e é  decorrente da herança de uma estrutura corrompida, da falta de educação ética dos agentes públicos, privados e impregnada em parte do inconsciente coletivo. É necessário combater com lucidez, a extrema desigualdade, a discriminação e exclusão político-social que ainda são estimuladas, como é o caso das Leis Trabalhistas que continuam estabelecidas como uma ordem jurídica que não promove o bem estar de todos, não valoriza, não respeita os cidadãos e cidadãs como força de trabalho física, mental e, sobretudo humana, mas o bem estar do capitalismo e de seus protagonistas está garantido. Eis o absurdo de um sistema inconstitucional, pois a Constituição estabelece textualmente em seu Art. 3°, Parágrafo IV: Promover o bem estar de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.  

Aqui chegamos diante de mais uma contradição antagonica do sistema, que aplica uma política social através de um projeto com caráter profundamente antisocial. Mais uma vez, idendificamos o sinistro jogo de manipulação, em que a política social é ficção, e o projeto antisocial é a pura realidade discriminatória. Desta questão de discriminação, faz parte também o incessante confronto com o racismo, que permanece estremamente arraigado no inconsciente coletivo, na estrutura e suprestrutura do sistema. Cabe aqui reprisar que, todas estas contradições do sistema da hereditariedade não são enfrentadas com o rigor de análise que nos leve ao cerne das questões, para combater a concepção absurda de que abolição da escravidão no Brasil, foi por si só, um ato abonador de extinção do racismo e discriminações. Em uma relação analógica, vem o embuste de que o fim das ditaduras de 1937 à 1945 e de 1964 à 1985, também determinam o fim das raízes do arbítrio e toda sua prole de barbáries.

Mantendo esta postura, corremos o risco de perpetuar o erro histórico de cultuar os mecanismos da hereditariedade do sistema de desigualdade, mantendo suas contradições no processo de democratização. É imprescidível desenvolver um processo de democratização com a participação popular, realizando a descentralização, a desapropriação do exercício do poder, pois com a presença do ranço autoritário da ditadura, fica impossível digerir a legitimidade deste processo. Por isso, é urgente transformar a estrutura e superestrutra, para a criação de um novo sistema econômico-social e regime político democrático, com a devida inspiração visionária na dimensão da realidade para que, sem exclusão e com discernimento, a sociedade brasileira encontre o sumo das raras raízes de um mundo social melhor e vá ao encontro da seiva democrática, do húmos humano, profundo e maior.

José Leal é jornalista e escritor, autor do recente romance “Vozes que Vibram a Vida” - Editora Multifoco – Rio de Janeiro/2013. Ex-preso político e ex-militante da Ala Vermelha. (Artigo publicado originalmente no site www.cartamaior.com.br, no dia 21 de março de 2014).



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