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  20/08/2014 - por Leonardo Boff



O ser humano é o último ser de grande porte a entrar no processo da evolução por nós conhecido. Como não existe somente matéria e energia, mas também informação, esta vem estocada em forma de memória, em todos os seres e em nós ao longo de todas as fases do processo cosmogênico. Em nossa memória, reboam as últimas reminiscências do big bang que deu origem ao nosso cosmos.

Nos arquivos de nossa memória são guardadas as vibrações energéticas oriundas das inimagináveis explosões das grandes estrelas vermelhas das quais vieram as supernovas e os conglomerados de galáxias, cada qual com suas bilhões de estrelas e planetas e asteroides. Nela se encontram ainda ressonâncias do calor gerado pela destruição de galáxias umas devorando outras, do fogo originário das estrelas e dos planetas ao seu redor, da incandescência da Terra, do fragor dos líquidos que caíram por 100 milhões de anos por sobre o nosso planeta até resfriá-lo (era hadeana), da exuberância das florestas ancestrais, reminiscências da voracidade dos dinossauros que reinaram, soberanos, por 135 milhões de anos, da agressividade dos nossos ancestrais no afã de sobreviver, do entusiasmo pelo fogo que ilumina e cozinha, da alegria pelo primeiro símbolo criado e pela primeira palavra pronunciada, reminiscências da suavidade das brisas leves, das manhãs diáfanas, do alcantilado das montanhas cobertas de neve, por fim, lembranças da interdependências entre todos os seres, criando a comunidade dos viventes, do encontro com o outro, capaz de ternura, entrega e amor e finalmente, do êxtase da descoberta do mistério do mundo que todos chamam por mil nomes e nós por Deus.

Tudo isso está sepultado em algum canto de nossa psiqué e no código genético de cada célula de nosso corpo, porque somos tão ancestrais quanto o universo.

Nós não vivemos neste universo nem sobre a nossa Terra como seres erráticos. Nós viemos do útero comum donde vieram todas as coisas, da Energia de Fundo ou do Abismo Alimentador de todos os seres, do hádrion primordial, do top-quark up, um dos tijolinhos mais ancestrais do edifício cósmico até o computador atual. E somos filhos e filhas da Terra. Mais. Somos aquela parte da Terra que anda e dança, que freme de emoção e pensa, que quer e ama, que se extasia e venera o Mistério. Todas estas coisas estiveram virtualmente no universo, se condensaram em nosso sistema solar e só depois irromperam concretas na nossa Terra. Porque tudo isso estava virtualmente lá, pode estar agora aqui em nossas vidas.

O princípio cosmogênico, vale dizer, aquelas energias diretoras que comandam, cheias de propósito, todo o processo evolucionário obedecem a seguinte lógica tão bem e exposta por E. Morin, ordem, desordem, interação, nova ordem, nova desordem, novamente interação e assim sempre. Com essa lógica criam-se sempre mais complexidades e diferenciações; e na mesma proporção vão se criando interioridade e subjetividade até a sua expressão lúcida e consciente que é a mente humana. E simultaneamente e também na mesma proporção vai se gestando a capacidade de reciprocidade de todos com todos, em todos os momentos e em todas as situações. Diferenciação /interioridade/ comunhão: eis a trindade cósmica que preside o organismo do universo.

Tudo vai acontecendo processualmente e evolutivamente submetido ao não-equilíbrio dinâmico(caos) que busca sempre um novo equilíbrio, através de adaptações e interdependências.

A existência humana não está fora desta dinâmica. Tem dentro de si estas constantes cósmicas de caos e de cosmos, de não-equilíbrio em busca de um novo equilíbrio. Enquanto estivermos vivos nos encontramos sempre enredados nesta condição. Quanto mais próximos do equilíbrio total, mais próximos da morte. A morte é a fixação do equilíbrio e do processo cosmogênico. Ou a sua passagem para um nível que demanda outra forma de acesso e de conhecimento.


Como esta estrutura concretamente se dá em nós? Antes de mais nada, pelo cotidiano. Cada qual vive o seu cotidiano que começa com a toillete pessoal, o jeito como mora, o que come, o trabalho, as relações familiares, os amigos, o amor. O cotidiano é prosaico e, não raro, carregado de desencanto. A maioria da humanidade vive restrita ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. É o lado da ordem universal que emerge na vida das pessoas.

Mas os seres humanos são também habitados pela imaginação. Ela rompe as barreiras do cotidiano e busca o novo. A imaginação é, por essência, fecunda; é o reino do poético, das probabilidades de si infinitas (de natureza quântica). Imaginamos nova vida, nova casa, novo trabalho, novos prazeres, novos relacionamentos, novo amor. A imaginação produz a crise existencial e o caos na ordem cotidiana.

É da sabedoria de cada um articular o cotidiano com o imaginário, o prosaico com o poético e retrabalhar a desordem e a ordem. Se alguém se entrega só ao imaginário, pode estar fazendo uma viagem, voa pelas nuvens esquecido da Terra e pode acabar numa clínica psiquiátrica. Pode também negar a força sedutora do imaginário, sacralizar o cotidiano e sepultar-se, vivo, dentro dele. Então se mostra pesado, desinteressante e frustrado. Rompe com a lógica do movimento universal.

Quando alguém, entretanto, assume seu cotidiano e o vivifica com injeções de criação então começa a irradiar uma rara energia interior percebida pelos que com ele convivem.

* Leonardo Boff junto com Mark Hathaway escreveu O Tao da Libertação Nova Ciência e Cosmologia, Vozes 2012. (Publicado originalmente no Adital no dia 19 de agosto de 2014)



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