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Entrevista: A influência da Revolução Russa para o Direito



Data: 05/10/2017

A Revolução Russa que completa cem anos, em novembro, deixou um amplo legado para os trabalhadores do mundo. Entre eles, estão diversas mudanças no sistema jurídico da União Soviética que, além de pioneiras, serviram também para forçar países capitalistas a modificar suas leis e regulamentos pelo medo do crescimento da mobilização dos trabalhadores.

Em entrevista para a edição de setembro do InformANDES, jornal do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), o professor de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Gustavo Seferian, explicou como a Revolução Russa e as posteriores mudanças jurídicas realizadas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foram fundamentais como exemplo para a luta dos trabalhadores do mundo, e para “assustar” governos de países capitalistas que, nos primeiros sinais de descontentamento social, preferiam garantir alguns direitos a possibilitar levantes revolucionários, que tivessem inspiração na experiência russa.

Confira a entrevista:

Você pode citar exemplos de legislação e direitos que tiveram inspiração ou foram alcançados após, e por conta da, Revolução Russa?

Esses direitos que temos no Brasil e atrelamos intimamente ao Direito do Trabalho, como férias, décimo terceiro, fundo de garantia, etc., são particularidades da nossa realidade que se repetem pelo mundo de forma desigual com uma espécie de lastro comum. Em alguns países, isso se afirma antes, em outros, isso se dá depois. O primeiro dos grandes marcos que desponta do processo revolucionário russo, ainda que não tenha sido pioneiro, é a regulamentação da jornada diária de trabalho.

Desde 1830 já existiam leis fabris na Inglaterra em que isso era colocado, mas há uma propensão universalizante após a Revolução Russa. Desde as questões de saúde e segurança do trabalho, a regulamentação dessas questões assumem nova forma após a demanda e preocupação coletiva que passa a se ter no seio da URSS. A questão do descanso anual foi também colocada em prática e regulamentada a partir da Rússia, em que pese algumas categorias específicas de alguns países do mundo já houvesse férias.

No caso da Revolução Russa o que é fundamental é que essas demandas passam a assumir efeito de universalização, haja visto que essas bandeiras passam a ser referência aos países burgueses, que diante do primeiro despontar de efervescência social, passam a conferir direitos para inibir o crescimento da mobilização e a possibilidade de eclosão de um processo revolucionário. Isso acaba sendo o principal elemento de referência soviética nesses direitos. E a ideia de todo mundo ter trabalho é a garantia que se passa a conferir de que todo cidadão terá garantida a renda para promover a reprodução da sua vida. O que, numa sociedade capitalista, é condicionado à venda de sua força de trabalho, a perspectiva do assalariamento por meio de uma obtenção de vaga de trabalho para que se possa viver, não tem mais esse caráter na sociedade soviética, ao menos formalmente. Isso subverte um alicerce da lógica capitalista, que é que um sujeito, para sobreviver, deve vender sua força de trabalho e o estado nada fará para garantir isso.

O que há de diferente no Direito Soviético em relação a legislação de outros países?

Há muitas coisas importantes a serem destacadas como diferenciadoras do direito soviético. A primeira delas está relacionada com a teoria do Direito. A estruturação do Estado soviético vai acabar por fazer despontar uma grande preocupação com o pensar do Direito e com a recomposição do Direito em uma sociedade que sai do czarismo absolutista e recai em uma sociedade regida por um Estado em que o Direito existe. A teoria do Direito na Rússia era incipiente, e muitos dos mais interessantes teóricos do Direito foram soviéticos. Inclusive, um dos cargos de comissário do povo existentes após a Revolução era de Justiça, que foi ocupado por Peteris Stucka e seu vice era Evgeni Pachukanis.

Esses são dois grandes teóricos que vão travar um embate de leituras da teoria do Direito para poder enfrentar a problemática que desponta após a Revolução acerca de qual seria o papel do Direito, e se ele deveria continuar existindo. Em síntese, as distinções eram que Stucka defendia a possibilidade de construção de um Direito Socialista, a possibilidade de criação de um repertório jurídico que atendesse os interesses dos trabalhadores. Para ele, a construção de normas daria conta de regulamentar essa sociedade de transição, mas não acredita no Direito para sempre em uma sociedade comunista, assim como o Estado, o Direito também pereceria, mas, na transição, seria fundamental compreender o Direito socialista, tanto que ele trabalha na construção de leis e regras para a URSS.

O Pachukanis era mais purista, e faz uma leitura que ao meu ver é insuperável, no sentido da apropriação dos textos marxianos na leitura do Direito. Ele vai dizer que a forma jurídica guarda uma historicidade particular, que é a historicidade do capitalismo. O Direito existirá enquanto existir a mercadoria, a forma jurídica dominará a sociedade enquanto a mercadoria dominar a sociedade. Isso leva, inclusive, a dizer que enquanto houver Direito na URSS é evidência de que reminiscências capitalistas perduram na sociedade soviética. Por conta disso, houve uma pressão de Stalin para que ele revisse as suas posições, mas depois volta atrás e é enviado para a Sibéria, onde ele morre. Ele afronta, portanto, a ideia stalisnista de que o socialismo estava “dado” na URSS.

No Direito Civil, há uma série de revisões de referência que eram sacro-santas no Direito ocidental, especialmente a questão da propriedade, que passa a ser revista e relativizada a todo custo, ainda que tenhamos a admissão na URSS da propriedade individual e particular, atentando frontalmente contra a propriedade dos meios de produção. E, mesmo assim, a propriedade de meios de produção é permitida em alguns certames. De qualquer maneira, há expropriações de igreja, da nobreza, dos grandes proprietários de terra, mas, em algumas circunstâncias, isso é relativizado.

No Direito Penal, a URSS deixa de ter como alvo prioritário os crimes contra a propriedade e passam a ser mais gravosos os crimes contra o regime e contra a Revolução. Furto, roubo e ocupação de terra deixam de ser graves. O trato do crime na URSS chega a uma situação especifica em que se desenvolve um código, o código de Kirilenko, que rompe com as perspectivas de ter tipos penais específicos.  Não se fala o que seria crime, como homicídio, roubo, furto, etc. Só traz aspectos gerais sobre o crime, e cabe ao povo trabalhador decidir o que é crime ou não. Isso é profundamente revolucionário e rompe com a lógica do direito penal burguês, muito amparado em teóricos liberais franceses. É uma abertura, uma confiança à população russa, o que os liberais consideram um grande absurdo.

Há uma alteração, também, nos tribunais soviéticos. Os antigos magistrados, juízes tradicionais, inclusive hereditários antes da Revolução, são destituídos de seus cargos e os juízes passam a ser populares, o operário, o pescador, o professor passam a compor os tribunais. Uma coisa que não se altera fundamentalmente é a lógica punitivista do Estado Penal. As prisões continuam existindo, o aparelho repressor do Estado passa por uma recomposição, mas a polícia continua tendo um grande poder, que se intensifica com a contrarrevolução burocrática de Stalin.

No Direito das mulheres, a URSS vai ter duas alterações, uma penal e outra civil, que são muito relevantes. A primeira, penal, é a descriminalização e a permissão da realização de aborto, o que é algo que debatemos, cem anos depois, no Brasil. Mas, com a contrarrevolução, essa permissão cai. E, no âmbito civil, há o direito ao divórcio, que era proibido, o que ajuda a romper com a dominância que as mulheres sofriam em suas famílias.

Na sua opinião, qual o legado que a Revolução Russa deixa ao Direito?

O legado que a Revolução Russa deixa ao Direito é a compreensão de que aquilo que tomamos como natural, certo, eterno – a leitura posivitista do Direito – não pode ser compreendido assim. Tudo é possível de mudar, inclusive o Direito. E essas normas e estruturas são fundamentalmente colocadas pelo processo de luta social. Ainda que não necessariamente essas melhorias sociais cristalizadas em lei sejam fruto exclusivamente de processos revolucionários, a luta de classes serve para que o aparelho de estado dê a salvaguarda de garantias indispensáveis para o bem viver. O maior dos legados é esse. O Direito, ainda que se afirme como inabalável e eterno, é passível de alterações, e não só alterações favoráveis à burguesia, mas também, reflexo das ofensivas e resistências dos trabalhadores.

Imagem: Courtesy Everett Collection/Fotoarena

Fonte: ANDES-SN



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