Data: 16/08/2017
Implementada via Medida Provisória e sancionada no dia 16 de fevereiro deste ano, a Contrarreforma do Ensino Médio dá destaque ao ensino técnico, altera a estrutura curricular e cria ‘itinerários formativos’ sem deixar claro o que isso significa, além de prescindir das contribuições da sociedade. Não é à toa que o tema, quase seis meses após a publicação da lei, ainda gera discussão.
Sobre esse assunto, a ADUA conversou com a doutora em Educação, Silvia Conde, chefa do Departamento de Administração e Planejamento (Daplan) da Faculdade de Educação (Faced), da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Integrante do Grupo de Estudos da Contrarreforma do Ensino Médio, recém-criado e formado por docentes e estudantes da instituição, além de professores da rede estadual de Educação, Conde ressalta que “na agenda dos governos brasileiros, a educação integrada nunca foi pauta”.
Confira a entrevista exclusiva para o site da ADUA!
1) Como avalia a situação do Ensino Médio no Brasil, antes mesmo da reforma aprovada?
Silvia Conde (SC): O Ensino Médio no Brasil traz em sua concepção uma relação com o conceito de Educação Básica, a qual está estabelecida em três etapas: Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Esse último é a etapa final de uma formação básica, cujo conceito está em disputa desde a Constituinte de 1988. Um conceito síntese de conflitos de dois grandes interesses articulados nas disputas do campo educacional: os interesses daqueles que defendiam a Educação numa perspectiva pública e um outro grupo, do empresariado da Educação, ligado ao setor privatista. A grande questão hoje relacionada ao Ensino Médio é qual a concepção de Estado, Educação e Sociedade para essa etapa da formação. O Ensino Médio, como parte dessa discussão, está sob disputa na contradição ‘capital versus trabalho’.
2) O Ensino Médio sempre esteve em disputa nessa correlação de forças?
SC: Sim, sempre esteve. Na história da Educação Brasileira, a contradição ‘capital versus trabalho’ se configurou de diferentes maneiras e em diferentes momentos na disputa pelo fundo público. A Educação também está tencionada por um projeto maior.
3) O Ensino Médio necessitaria, na sua avaliação, de uma reformulação?
SC: Depende para que projeto de sociedade. O que está em discussão? As condições. Por isso, digo que essa é uma contrarreforma. O projeto de contrarreforma do Ensino Médio é um projeto de classe, com cunho político e ideológico, que acirra antigos debates pela disputa de conhecimento. O que se deve ensinar no Ensino Médio? Conteúdos que levem à formação para um mercado de trabalho, apenas como mão de obra para um mercado específico, ou se vai discutir a questão da formação para processos de ciência, cultura, tecnologia, educação, do mundo do trabalho? Na minha opinião, essa contrarreforma seleciona: o jovem brasileiro não vai ser formado para todos os princípios que articulam os conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, ao que todo cidadão deveria ter acesso, uma formação mais unitária e crítica, na perspectiva de Gramsci.
4) A quem interessa, então, essa contrarreforma?
SC: É um ataque à Educação Pública. Faz parte de um conjunto de ações contra os direitos do trabalhador, como a Reforma Trabalhista já aprovada e a Reforma da Previdência em discussão. A contrarreforma do Ensino Médio atende aos interesses dos empresários da Educação e tem relação direta com os interesses do capital, pois acirra a contradição público versus privado. É difícil, de modo geral, identificar as sutilezas que a lei traz. No comercial, tudo é lindo. [A propaganda] parte do princípio de que cada qual pode fazer suas escolhas. Ora, quem não gosta de fazer escolhas?
5) Qual a garantia que o governo dá para o estudante exercer esse direito de escolher qual caminho seguir?
SC: Entre as consequências dessa contrarreforma do Ensino Médio há dois eixos centrais: a mudança curricular pedagógica e o financiamento. Como os Sistemas Estaduais definem a possibilidade de oferta? Não é por meio do financiamento? Se é por meio do financiamento, as mudanças serão as piores possíveis. Além de transferir a responsabilidade para os Sistemas Estaduais de Educação, o governo transfere ainda a culpa para o indivíduo. ‘Se der certo, ok. Se não der certo, foi o cidadão que escolheu errado!’ Não há um projeto coletivo de sociedade que contemple as maiorias excluídas desse Sistema. Ou seja, nem tudo está disponível para todos.
6) Essa valorização do Sistema, na sua opinião, deprecia os espaços coletivos que vinham sendo construídos em defesa da Educação Pública de qualidade?
SC: Esse é outro aspecto negativo dessa contrarreforma: o fim dos processos de construção da gestão democrática possível nos últimos 30 anos. Desde a Constituição Federal de 1988 há um ineditismo: a questão da gestão democrática do ensino público. Então, nos últimos 30 anos, estamos construindo mecanismos e possibilidades de espaços de participação social e popular: as conferências, os espaços em defesa da escola pública, o Fórum Nacional de Educação – que está sendo frontalmente atacado pelo governo Temer ao mexer na sua composição. Uma das faces nefastas dessa contrarreforma é o ataque a todo processo de construção da gestão democrática do ensino, cujo projeto político pedagógico visava dar identidade à escola e sentido à vida dos sujeitos da escola. E agora, quem vai definir o projeto político pedagógico é o Sistema. E os Sistemas vão definir as possibilidades dos itinerários formativos a partir de que critérios? As escolhas, já sabemos, vão ser pelas opções possíveis financeiramente. Daí a importância dos sujeitos que defendem o Ensino Médio numa concepção de formação humana e integrada, na perspectiva da ciência, da cultura e do trabalho fazerem parte do embate. Muito da reforma ainda será desenhado a partir da Base Nacional Comum Curricular [BNCC].
7) A senhora já consegue visualizar outros riscos e consequências dessa reforma?
SC:Imaginar, por exemplo, que o itinerário formativo pode ser composto mediante certificado de instituição de educação à distância. Basta ela ser reconhecida por notório saber. Não há mais critério para formação no Ensino Médio. Se a escola é o espaço de produção e reprodução do conhecimento, percebe agora que qualquer espaço pode ser e, mais, dizer o que tem que fazer parte da vida escolar. Isso fragiliza muito a educação! Por isso, é necessário se antecipar nas estratégias de interpretação dessa contrarreforma, que está sendo colocada a conta-gotas.
8) Essa contrarreforma gera algum prejuízo para a formação e para o trabalho docente? Em que medida é um ataque à carreira do professor?
SC: Será que agora teremos de rever nossos cursos a partir do que diz a BNCC? Isso nos afeta diretamente. Qual seria o sentido da universidade senão para formar, no caso das licenciaturas, professores para o Ensino Médio? Quem é que vai dar aula no Ensino Médio? Há anos se trabalha com a concepção e a construção do conhecimento na perspectiva da Educação como um processo mais amplo e não restrito à escolarização, mas um caminho possibilitado pela produção e reprodução do conhecimento historicamente construído.
9) Há nessa reforma uma espécie de ‘reducionismo’ do conhecimento curricular?
SC: Todos os autores que tenho lido e os elementos que eles utilizam para analisar essa contrarreforma apontam para isso: para o reducionismo, para uma volta ao passado. Penso que é pior que a volta ao passado. Se antes, no passado, você tinha formação para um ramo específico do ensino, um ramo específico profissional, hoje vem tem um itinerário formativo, não é nem a área do conhecimento. Antes você tinha a área das ciências humanas e suas tecnologias. Agora você tem o itinerário formativo da linguagem e suas tecnologias. O que que é isso? Enquanto era área, você ainda tinha noção do que poderia ser. Todo aporte teórico metodológico, no qual eu busco coerência na minha atividade como docente, que abarca as atividades de ensino, pesquisa e extensão, não me permite dizer que a história se repete. Lembrando Marx, os acontecimentos dos fatos ocorrem, no mínimo, duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda é farsa. Então, se estão retomando um determinado modelo de uma determinada época, agora é uma farsa!
10) Se pudesse fazer uma comparação, essa contrarreforma do Ensino Médio é o pior momento na história da política educacional brasileira?
SC: Eu diria que é mais um momento de tensão de um projeto societário que nega acesso de uma maioria a um direito fundamental: à Educação. É um conjunto de medidas que retiram direitos, articulados com a Emenda Constitucional 95 [que limita por 20 anos os gastos públicos]. Nos últimos anos da década de 2000, de alguma forma, os movimentos sociais construíram uma agenda nem sempre atendida, hoje há um uma espécie de recrudescimento. Esses processos todos, do jeito que estão ocorrendo, a sensação é de que há ataque frontal, como se tivesse uma tropa de choque montada, pronta para que tudo seja aprovado. Não são ameaças veladas não: com ou sem Temer, as reformas vão passar.
11) Ano passado mais de mil escolas no Brasil foram ocupadas contra, naquela ocasião, a proposta de Reforma do Ensino Médio. O que é preciso fazer para barrar esses retrocessos?
SC: A contrarreforma já passou e vai se consolidar com os encaminhamentos da BNCC. Temos que nos antecipar no sentido de entender melhor de que forma isso vai ser implantado para que criemos estratégias de resistência. A resistência ao processo legislativo é fundamental. Mas, fazer a história a partir da nossa ação de sujeitos pode nos dar saídas, respostas ao que é preciso fazer.
12) O que já está claro é que há uma espécie de formação para pessoas da classe dirigente e pessoas da classe trabalhadora...
SC: No nosso país, é assim que tem se dado a história. Marcado sempre por essa dualidade. Em alguns momentos de maneira mais exacerbada, em outros momentos que não trouxeram a discussão à tona. Esse é um processo marcadamente da nossa sociedade. Somos uma sociedade dividida em classes e não podemos esquecer isso. No aspecto formal, a Educação é para todos. O Estado está para atender o bem comum. Eu não acredito no Estado que vai atender o bem comum. Quem é que vai atender o bem comum numa sociedade dividida em classes? A classe hegemônica, dominante é que vai dizer o que é o bem comum. No nosso sistema representativo, quem está dizendo o que é o bem comum é a classe empresarial.
13) O ANDES-SN defende a formação integral, unitária e crítica para a formação do estudante. Esse aspecto está superado com essa reforma?
SC: A formação integral não é contemplada. Na realidade nunca foi, até porque a educação integrada é uma bandeira socialista. Como o capital tomou conta disso? Pela troca de conceitos: se fala em educação de tempo integral. O cidadão, que trabalha muitas horas por dia, se preocupa com essas questões mais conceituais? E aquele que vai precisar trabalhar mais ainda, por conta da Reforma da Previdência? Quando vai pensar na diferença entre educação integrada e educação de tempo integral? Percebe como é realmente difícil para a população trabalhadora se apropriar dessas informações. E não é porque não quer. É porque não tem tempo mesmo, não tem condições de vida. É nefasto isso! Na agenda dos governos brasileiros, a educação integrada, como concepção de formação humana, nunca foi uma pauta.
Fonte: ADUA |