Documento sem título






     Notícias






Entrevista: Arbex analisa a relação mídia x sindicatos



"Vivemos um Estado de exceção com a aparência de uma democracia", disse Arbex.


A declaração de que a democracia no Brasil é um dos grandes mitos que a mídia ajudou a construir no país é a provocação que se destaca em palestras proferidas pelo jornalista José Arbex Jr a profissionais de comunicação. Para ele, a partir dessa assertiva fica compreensível a relação estabelecida hoje entre a mídia e os movimentos sociais e populares no Brasil.

José Arbex Jr é jornalista, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da PUC-SP. É conhecido nos meios acadêmico e sindical pela autoria dos livros Showrnalismo - A Notícia Como Espetáculo e O jornalismo canalha. A carreira de Arbex teve início quando trabalhou no semanário trotskista O Trabalho, ligado à Organização Socialista Internacionalista (OSI). Trabalhou na Folha de S. Paulo, Brasil de Fato e hoje é editor especial da Revista Caros Amigos.

Em virtude de encontro entre professores universitários e jornalistas sindicais promovido pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Arbex esteve em Brasília e reservou alguns minutos para uma breve entrevista. Participaram da conversa a jornalista Aline Pereira, da Associação dos Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Adur-RJ); Clayton Nobre, da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Amazonas (Adua); e Fritz Nunes, da Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria (Sedufsm).

Durante a entrevista, ele analisa historicamente a relação entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o movimento indígena com a mídia e a opinião pública. Ele também comenta a ameaça de fechamento da Escola Florestan Fernandes, curso superior paulista que ganhou notoriedade por ser criada por um movimento popular. Confira:

Fritz Nunes (Sedufsm) – Na tua avaliação, por que a mídia continua “demonizando” o MST? Na tua experiência, há uma relação entre o que a mídia brasileira faz com o MST e o que mídia mundial procura fazer com o Talibã, o Hamas, entre outros grupos de resistência?

Em primeiro lugar vamos entender o que acontece no Brasil. O Brasil é um Estado marcado pelo legado da escravidão. Foi 400 anos um Estado escravista. No século XX, você teve 30 anos de República Velha, que na verdade foi um regime controlado por duas grandes oligarquias, a política do café-com-leite, as oligarquias mineira e paulista. Depois, o Estado Novo. Você pode dizer, então, que até 1945 o Brasil nunca viveu um período democrático.

E depois de 1945? Também não. Você teve a proibição dos partidos de esquerda pelo Dutra. Veio Juscelino Kubitschek com toda a ideologia dele de um país moderno, mas foi um momento em que os partidos continuavam clandestinos, e se abriram as portas para o capital estrangeiro. Houve o golpe de 1964, mais 20 anos de ditadura militar. Nós chegamos basicamente até 1985, ou seja, 485 anos da história brasileira sem democracia. Nem mesmo a aparência de democracia. Nada. Um Estado absolutamente autoritário.

A partir de 1985, temos aí uma aparência de democracia, as pessoas já podem votar, mas na verdade se mantém o regime de exceção por meio do governo de medidas provisórias e por meio do impedimento de que o brasileiro tenha acesso a sua própria memória. Nenhum ditador foi punido, por exemplo. Nenhum torturador foi punido. O aparato da antiga SNI (Serviço Nacional de Informações) se manteve intacto, se transformou em Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Todo o aparato de repressão da ditadura se mantém. Nós vivemos um Estado de exceção com a aparência de uma normalidade democrática.

O MST é a denúncia viva disso. Por quê? Porque o MST organiza os setores sociais brasileiros que nunca tiveram a oportunidade de participar da vida política do país. Eu não estou falando de trabalhador com carteirinha de não-sei-de-quê, do sindicalizado, do alfabetizado, não. Estou falando do trabalhador de um Brasil profundo, do campo, do sujeito que passa fome, que não tem o que comer, analfabeto, desesperado, vítima do latifúndio. É esse trabalhador que o MST organiza. Isso representa um perigo para o Estado autoritário brasileiro, porque a partir do momento em que essa população começa a ser organizada, a própria estrutura escravista é colocada em questão.

O MST não apenas mostrou que isso é possível, como mostrou que é possível você vincular a alta intelectualidade universitária com setores mais miseráveis da sociedade brasileira, que é o que faz hoje a Escola Florestan Fernandes.

É por isso que a burguesia odeia o MST, não pode ouvir falar em MST. Não é apenas por causa da questão da terra, mas porque o MST mostrou que existe um caminho possível de articulação entre a classe média, os intelectuais e o proletariado brasileiro. Isso é o grande perigo que o Estado brasileiro não suporta. Diga-se de passagem: se existe uma coisa em comum ao longo de 500 anos na história do Brasil é o monopólio da terra. É o latifúndio. E o MST mexe diretamente com o latifúndio.

Clayton Nobre
"Os os argumentos (da mídia) são apresentados de forma capciosa para criar armadilhas mentais", alerta escritor.


Em outras escalas, em situações e contextos completamente diferentes, é isso que acontece com os movimentos sociais no mundo inteiro. Não é à toa que o MST participa ativamente da organização internacional de camponeses chamada Via Campesina, que junta camponeses da África, da Ásia, da América Latina e até da Europa. Eles lutam no mundo inteiro contra os transgênicos, contra o monopólio das empresas de alimentação, e etc e tal.

Evidentemente o caso que você citou do Hamas, Hezbollah, e outras organizações são caracterizadas pela mídia como terroristas, mas na verdade têm uma profunda história de inserção social. Você não consegue explicar como é que uma organização como o Hezbollah, no sul do Líbano, consegue ganhar as eleições e fazer uma manifestação com 500 mil pessoas em praça pública se ele é uma organização de terroristas. Não dá para explicar. É uma organização com vínculo com trabalhadores, com a juventude, faz trabalho social, de educação, e tem, evidentemente, um braço militar.

A mesma coisa é o Hamas. Se eles fossem uma organização terrorista não tinham ganhado as eleições na Palestina em 2006. Então, são organizações que têm uma origem de luta cura origem remonta 1929, quando foi formada a primeira organização islâmica fundamentalista no Egito e foi criada para lutar contra o colonialismo franco-britânico. Desde o começo eles tinham um trabalho social muito importante e só foram para luta armada porque o rei do Egito iniciou um processo de repressão intenso contra eles. Você quer fazer movimento social, construir escolas, hospitais, e o cara te mata? Você tem que se defender. É uma situação muito mais complexa e rica do que a mídia mostra cotidianamente.

Fritz Nunes (Sedufsm) – Tu trabalhaste na chamada grande imprensa. Como você detectou a construção desses conceitos? Aquele jornalista inglês Robert Fisk fala do uso da palavra terrorismo, que justifica, hoje em dia, qualquer coisa.

Assim como no Brasil usam a palavra invasão. O correto é ocupação. A constituição brasileira permite que os movimentos sindicais façam pressão para que se faça valer a própria constituição, que prevê o uso social da terra, o respeito à agroecologia. Inconstitucional é o latifúndio, não o MST.

Outro exemplo é o termo periferia. Quando se fala “o sujeito é da periferia”, é suficiente para qualificá-lo como criminoso, narcotraficante, etc. Isso me chamou muita atenção em 1991, quando houve a chamada Guerra do Golfo, um ataque feito por 35 países contra o Iraque e a televisão mostrou durante 45 dias uma guerra em que “ninguém morreu”. Ora, Bagdá tinha 4,8 milhões de habitantes. Os caras bombardearam 45 dias e noites consecutivas, com um poder do fogo equivalente, só na primeira semana, a uma bomba de Hiroshima por dia. Alguém pode me explicar como você consegue bombardear uma capital com mais de quatro milhões de habitantes, com esse poder de fogo, e ninguém morrer? É um absurdo.

Absurdo maior foi eles conseguirem vender essa versão. Isso me deixou de orelha em pé. Como a grande mídia consegue mostrar uma guerra dessa daí, e convencer as pessoas de que ninguém morreu?

O problema aí não é a mentira da mídia. O problema é as pessoas acreditarem. Isso me fez sair da imprensa e ir para a universidade. Eu queria estudar isso. Minha tese de doutorado é sobre essa questão: você bota um rótulo, um “árabe comunista”, e a partir disso ele deixa de ser humano. Se ele deixa de ser humano você pode matar; ora, não é mais humano.

É o que acontece na periferia agora. Morrem 50 mil pessoas por ano e ninguém nota. Por quê? Porque não são seres humanos, são periferia. É também o que os colonizadores fizeram quando chegaram nas Américas e disseram “índio não tem alma”. A partir daí você pode matar todo mundo.

Clayton Nobre (Adua) – Você fala isso e eu lembro, na Amazônia, a polêmica sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte no Pará e também a confusão na Raposa Serra do Sol em Roraima. Em Boa Vista, parecia predominar uma opinião pública, que era a opinião da mídia local, a favor dos arrozeiros. Como os sindicatos e movimentos sociais poderiam entrar numa disputa hegemônica com a mídia, sensibilizar as pessoas e provocar uma discussão em relação a isso?

É sempre bom recuperar a memória histórica. Durante a época da ditadura militar, como é que a Amazônia foi apresentada? Existem cartazes da ditadura militar facilmente recuperáveis em qualquer hemeroteca. Eles dizem “Uma terra sem povo para indústrias que querem terra”. Quer dizer, não tem povo na Amazônia e a indústria quer terra. Se você recuperar isso, você já pode fazer um direcionamento: aqueles que dizem que não tem povo na Amazônia, que o povo não tem direito à Amazônia, estão comprando a linguagem da ditadura militar. A mídia sindical poderia recuperar esses cartazes da ditadura e questionar: “você quer se associar ao Médici, aos torturadores?”.

Em segundo lugar, existe uma incompreensão do que significa o espaço para uma nação indígena, e o que significa espaço para nós. Nós vivemos num apartamento de 100m². O indígena não vive em 100m². Isso implica respeito a uma outra cultura, a uma outra maneira de ver o mundo. Isso é uma coisa que nós também temos que mostrar. Eu questionaria: você assassinaria um japonês que come com palito? Você acha alguém mal-educado porque come sentado no chão? Você respeita ou não respeita outras culturas? O problema do respeito à cultura indígena é esse.

Existe outro problema cultural mais profundo. As pessoas defendem hoje um conceito de produtividade que não é o conceito das populações originárias. Por exemplo, você tem tribos que plantam 40 tipos de mandioca, alguns tipos de mandioca só duram 2 dias, depois apodrece, outros duram 6 meses. Mas então por que não plantam tudo em 6 meses, já que a produtividade é maior? O problema é que para aquele povo, aquela mandioca que dura só dois dias tem um significado antropológico, cultural, religioso. Ela tem que produzir aquilo independente da produtividade do solo, mas por costume, por hábito.

Um dos argumentos contra aqueles que defendem a reforma agrária é que o agronegócio é muito mais produtivo, e a pequena propriedade hoje não consegue competir com os índices de preços de comida no mercado internacional. Você inclui aí o parâmetro da produtividade, que é o parâmetro central da tua argumentação. Contra esse argumento eu digo: mesmo se fosse verdade isso que você está falando, que a pequena propriedade não é produtiva e não consegue competir, eu pergunto se o ser humano deve estar condenado à morte porque ele não é produtivo.

A discussão da reforma agrária colocada nesses extremos oculta a tragédia da fome. Se a pessoa não pode cultivar a terra ela vai comer o quê? Na cidade ela não vai encontrar emprego. Então muitas vezes os argumentos são apresentados de forma capciosa para criar essas armadilhas mentais. Se você empaca nessas armadilhas você está perdido.

Clayton Nobre
Para o jornalista, o MST mostrou que existe um caminho possível de articulação entre a classe média, os intelectuais e o proletariado brasileiro.


Aline Pereira (Adur-RJ) – Fale um pouco sobre a Escola Florestan Fernandes e essa situação em que ela se encontra agora.

A gente tinha que criar um espaço de formação de uma juventude, um espaço dedicado à formação de uma consciência teórica, vinculada aos movimentos sociais, que sempre foi alijada pelas universidades, sempre foi desprezada pelos Estados brasileiros. Surgiu a proposta da construção da Escola Floretan Fernandes.

Demos o nome de Escola Florestan Fernandes, evidentemente pelo papel que ele teve na sociologia brasileira e nas transformações sociais. Essa escola foi construída durante 5 anos, entre 2000 e 2005, em Guararema. O terreno em que ela está foi comprado graças à doação do livro “Terra”, de Sebastião Salgado, com textos de José Saramago e Chico Buarque. Todos eles cederam os direitos ao MST. Também houve contribuições de ONGs, além de muito trabalho voluntário. Mais de mil trabalhadores ajudaram.

Com a abertura da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito), as verbas foram cortadas e ficou uma situação muito complicada. Nós criamos, então, em dezembro, a Associação de Amigos da Escola Florestan Fernandes, formada por professores universitários, intelectuais, artistas e gente que apóia a iniciativa, para fazer uma campanha de associação. O objetivo é arrecadar fundos para a escola continuar as atividades.

Por que, para nós, isso é importante? Basta dizer que nos cinco anos de existência a escola formou mais de 16 mil militantes do Brasil, da América Latina e da África. Eles tiveram aulas de formação política, técnicas de agricultura ecológica, aulas de geografia, história, ciências, economia, cursos de nível superior. Essa é uma experiência que não pode morrer, pelo contrário, precisa ser ampliada, fortalecida.

Aline Pereira (Adur-RJ) – O que uma pessoa pode fazer para colaborar com a Escola?

A Associação dos Amigos da Escola Florestan Fernandes criou um site (amigosenff.org.br). Existe uma ficha para quem quiser se associar. Nós cobramos um mínimo de R$ 20 por mês. Estamos com a expectativa de ter 5 mil associados. Isso dá R$ 100 mil por mês, uma verba que ajuda a manter a escola. Se você se associar, você adquire os direitos de participar de todas as atividades. Agora, por exemplo, nós estamos fazendo em São Paulo um seminário que dura um ano inteiro e todos os associados estão propondo mais atividades para o próximo semestre.

Quando você se associa, você se torna um membro pleno da associação, com direito a participar ou não. Se você quiser só contribuir com o dinheiro, a opção é sua. Essa é uma forma de criar um canal com a escola.



Galeria de Fotos