
Aldair Andrade durante a palestra “As falácias por trás da Re forma Administrativa”, realizada em 24 de setembro, no ICET - Foto: Sue Anne Cursino/ Ascom ADUA
*Entrevista feita por Sue Anne Cursino, com o professor Aldair Oliveira no dia 18 de setembro de 2025, antes da publicação do relatório do Grupo de Trabalho (GT) na Câmara dos Deputados que trata da Reforma Administrativa.
A ADUA realizou entrevista com o professor Aldair Oliveira de Andrade, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS) da Ufam, sobre os impactos da Reforma Administrativa no serviço público, em especial na educação.
O docente resgatou o histórico das reformas administrativas no Brasil e apontou que a atual proposta aprofunda as medidas da PEC 32, barrada em 2024 pela luta sindical. Segundo ele, trata-se de uma “contrarreforma” que precariza carreiras, retira direitos e abre espaço para privatizações, sob o falso discurso de combate a privilégios e de eficiência do Estado. Leia a entrevista completa e entenda os riscos da Reforma Administrativa.
ADUA: Como se deu o processo histórico das reformas administrativas no Brasil e de que forma ele se conecta com a proposta atual?
Aldair: As reformas administrativas no Brasil têm origem no Decreto nº 200, de 1967, no período da ditadura militar, e continuam vigentes até hoje. Com a Constituição de 1988, parecia que haveria um novo desenho do Estado, mas logo em seguida, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 19, conhecida como Reforma Administrativa, que buscava estabelecer um novo modelo de gestão pública. Essa reforma, no entanto, não avançou plenamente e permaneceu em grande parte no limbo.
Outras mudanças se seguiram, como a Emenda Constitucional nº 41, que alterou regras de aposentadoria, e a Lei nº 12.618, que criou o Funpresp, introduzindo a previdência complementar para servidores. Ao longo dos anos, o artigo 37 da Constituição tem sido continuamente modificado e fragilizado. A PEC 32 buscou consolidar essas transformações em um projeto amplo de reestruturação do Estado brasileiro. Embora não tenha sido aprovada, continua a tramitar e pode ser retomada, agora com uma nova roupagem. Essa nova proposta, contra a qual estamos hoje lutando para barrar, aprofunda o que já estava previsto na PEC 32, introduzindo, por exemplo, a regulamentação de carreiras típicas de Estado, a criação de uma elite dentro do serviço público e a extensão das mudanças para União, estados e municípios, atingindo todas as esferas da administração pública.
ADUA: De que maneira a Reforma Administrativa ameaça o funcionamento do serviço público no Brasil?
Aldair: Um dos principais ataques ao serviço público é o discurso midiático que embala a proposta da contrarreforma administrativa. Afirma-se que o Brasil gasta demais com servidores, que o Estado é ineficiente, que a máquina pública está inchada e que há supersalários generalizados. Tudo isso é falso.
O Brasil possui número de servidores inferior à média da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], sendo que os gastos públicos com pessoal representam apenas 3,1% do Produto Interno Bruto com o Poder Executivo, e a grande maioria dos servidores recebe salários compatíveis. Apenas 0,3% recebem acima do teto, concentrados principalmente no Judiciário e no Ministério Público. Além disso, a pandemia demonstrou a eficiência do serviço público, sobretudo na saúde e na educação. Então o discurso de combate a privilégios ganhou adesão popular, o que torna mais difícil o convencimento social e a pressão sobre deputados e senadores.
ADUA: E quais são os possíveis impactos que diretamente poderão atingir as carreiras e condições de trabalho das servidoras e dos servidores da educação pública?
Aldair: A reforma ameaça diretamente os direitos de servidores da educação em diversos pontos. O primeiro é a contratação pela CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], liberada pelo Supremo Tribunal Federal em 2024, quebrando o Regime Jurídico Único. Isso abre espaço para vínculos mais precários.
Outro ponto é a criação de avaliações periódicas que podem levar à demissão por insuficiência de desempenho, estabelecidas a partir de metas rígidas. Para a educação, isso significa priorizar resultados quantitativos em detrimento da qualidade do ensino.
Também está prevista a mudança na estrutura de carreira: hoje existem 13 níveis, com possibilidade de progressão ao topo em 18 a 20 anos. A nova proposta cria 20 níveis, exigindo cerca de 40 anos de carreira, sem garantias de progressão financeira. Isso significa achatamento salarial e perda de atratividade para a carreira docente.
Por fim, há a possibilidade de contratação de temporários para atividades-fim, o que precariza ainda mais o trabalho e fragmenta departamentos, estimulando a competição interna por bonificações, ou seja, os reajustes salariais deixarão de ser conquistados por meio da negociação coletiva dos sindicatos e passarão a depender da disputa por bonificações individuais.
ADUA: Como a Reforma Administrativa pode comprometer a qualidade da educação pública e o acesso da população a esse direito?
Aldair: Ao transferir a responsabilidade dos serviços públicos para empresas privadas, ONGs e organizações sociais, o cidadão perde a possibilidade de cobrar diretamente do Estado. Diferentemente de hoje, em que é possível recorrer ao Ministério Público ou a órgãos de controle, passará a lidar com gestores privados, cuja prioridade será atender acionistas e não a população. Isso compromete o caráter democrático do serviço público, pois a sociedade deixa de ter canais de fiscalização e controle social. Além disso, os prestadores não serão concursados, mas contratados temporariamente, preocupados em manter seus empregos e atender metas, e não em garantir qualidade.
O cidadão também passará a avaliar a qualidade dos serviços públicos por meio de plataformas digitais, porém essa avaliação ocorre sem participação coletiva na construção e fiscalização desses serviços. Assim, o resultado será um serviço público enfraquecido.
ADUA: Durante suas falas nas mobilizações da ADUA, você tem destacado que existem alguns mitos que estão sendo utilizados para sustentar um discurso em favor da Reforma Administrativa. Quais seriam eles?
Aldair: Há três grandes mentiras que embalam a proposta. A primeira é dizer que o Brasil estaria inchado de servidores públicos. Isso é falso, pois são apenas 12 milhões de trabalhadores nessa categoria, o que está abaixo da média da OCDE, sendo 60% nos municípios, 30% nos estados e 10% na União. A segunda mentira é que o Brasil gasta demais com pessoal. É mais uma inverdade, pois a despesa com servidores nunca ultrapassou o limite da Lei de Responsabilidade Fiscal e está abaixo de 5% do PIB, no Executivo. E mais uma afirmação falsa é a de que o Estado é ineficiente. E sabemos que os grandes avanços científicos, tecnológicos e sociais são fruto de instituições públicas, como universidades e fundações de saúde. O que aconteceu na pandemia é a prova de que o Estado funciona e evitou a morte de milhares de pessoas no Brasil.
Mas precisamos então dizer qual a verdadeira motivação para criar essas mentiras, e isso significa explicar que essa proposta, na verdade, não é administrativa, mas fiscal. O que se quer é garantir liquidez para pagamento da dívida pública. Só em 2026, estão previstos R$ 2 trilhões para essa finalidade. Por isso, rentistas, mercado e grandes empresários financiam a aprovação da proposta. O pagamento da dívida pública exige recursos, que acabam sendo retirados do bolso da classe trabalhadora.
ADUA: Quais são os principais desafios enfrentados pelo movimento sindical na tentativa de barrar essa proposta, e quais seriam os possíveis próximos passos e estratégias a serem adotados?
Aldair: O maior desafio é reconectar os sindicatos à sociedade. Hoje, muitas entidades estão distantes das comunidades, encasteladas em estruturas burocráticas e, em alguns casos, vinculadas demais ao governo de plantão. É necessário retomar a autonomia, dialogar com a população e voltar às ruas, às audiências públicas e aos espaços comunitários.
Outro desafio é a comunicação, pois os sindicatos ainda não conseguem competir com o alcance das redes sociais e da mídia de massa. É preciso inovar nos formatos e buscar novas linguagens para mostrar que o que está em jogo é a cidadania e a própria sobrevivência da população. É possível observar que mesmo dentro das universidades há um processo de despolitização, resultado de décadas de ataques. Para superar esse cenário, os sindicatos precisam criar formas mais eficazes de mobilização e ampliar a participação dos próprios filiados.
O ANDES-Sindicato Nacional, por exemplo, tem cerca de 63 mil sindicalizados, mas a militância efetiva não chega a 30%. É necessário transformar esse número em participação ativa para enfrentar os desafios impostos pela Reforma.
Os sindicatos têm grande capacidade de analisar e criticar a conjuntura atual, identificando tendências e problemas no horizonte. Contudo, enfrentam dificuldades para superar o distanciamento existente entre sua estrutura interna e a população, que demonstra pouca confiança tanto nas entidades sindicais quanto nas organizações de representação, e menos ainda nos políticos. Esse cenário de desconfiança parece se consolidar, gerando um sentimento de imobilismo. Diante disso, considero que o principal desafio é que as entidades sindicais e representativas criem estratégias de comunicação e de aproximação com a comunidade, buscando reconstruir a relações. É fundamental romper a distância existente entre a entidade sindical e seus filiados, desenvolvendo mecanismos que promovam um novo tipo de organicidade e transformação da realidade social, porque sem a participação efetiva do cidadão nos processos de compreensão e transformação da realidade não há saída.

TAEs, estudantes e docentes da UFAM dizem não á Reforma Administrativa - Fotos: Sue Anne Cursino/ Ascom ADUA
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