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  21/06/2024



Arte e Resistência: Ditadura e a institucionalização da tortura no país



 

 

Daisy Melo

 

Marcado perpetuamente por sua história como colônia e vivência de períodos ditatoriais, o Brasil traz incrustrada em suas raízes a prática da tortura. Essa foi uma das reflexões feitas durante o cine debate do documentário “Cidadão Boilesen” (2009), de Chaim Litewski, exibido no 43o Encontro da Regional Norte 1 do ANDES-SN. O evento ocorreu nos dias 7 e 8 de junho na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Parintins (AM). A atividade abriu o último dia do encontro e teve como debatedores os professores da Ufam, Tomzé Costa (ADUA) e Guy Amado (ICSEZ/Parintins), e como mediador, Solano Guerreiro (INC/Benjamin Constant).

 

O filme narra a colaboração do presidente da Ultragaz, o dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen, com a Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985). A empresa chegou a financiar a Operação Bandeirantes (Oban), local onde as(os) presas(os) políticas(os) eram barbaramente torturadas(os) nos anos de chumbo. Sádico, Boilesen acompanhava as sessões de tortura na Oban e colaborou com a prática ao trazer para o país uma máquina de choques conhecida como “pianola Boilesen”. Devido às atuações, foi morto em 15 de abril de 1971 em uma ação de justiçamento da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário Tiradentes (MLT).

 

O empresário foi o pivô do gerenciamento e da mobilização ostensiva de financiamento e incremento da repressão, destaca o professor Guy. “A gente entende o porquê de eleger o Boilesen [para ser personagem central do documentário], pela importância real que ele teve. Não foi só mais um. Ele foi um dos grandes catalizadores do financiamento da repressão nos anos de chumbo (...) Ele é um criminoso. Ele é ao mesmo tempo o empresário e um dos agentes de aproximação do empresariado com os militares, com as polícias, com o aparato repressivo”. 

 

Quando o filme foi lançado em 2009 já era de conhecimento público o apoio da Ultragaz ao regime ditatorial, mas, segundo Tomzé Costa, a virtude do documentário é conseguir reunir mais detalhes sobre o tema. “É exatamente esse trabalho de ‘formiguinha’ que o Litewski fez em levantar os dados, que eram bastante escassos, e transformar num filme de longa metragem, condensar o que algumas pessoas já sabiam desse envolvimento, mas a grande população desconhecia”. Pelo feito, “Cidadão Boilesen”, lembrou o docente, foi eleito melhor documentário em 2009, no Festival “É Tudo Verdade”, em São Paulo.

 

Além da Ultragaz diversas outras empresas colaboraram com a Ditadura. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) chegou, inclusive, a criar o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) para fornecer apoio ao regime. Amado faz questão de frisar que tais empresas participaram não apenas do Golpe em 1964, mas da instalação e manutenção da Ditadura, financiando e cooptando outras(os) colaboradores. “O grande mérito do filme é mostrar a participação ativa das elites, do empresariado na perpetração, no financiamento e no endosso do Golpe, na manutenção da repressão”.

 

 

Assim como Boilesen, muitos outros empresários tiveram atuação similar. Guy aponta que os dois principais mediadores do financiamento da repressão foram o economista, Delfim Neto, e o dono do banco Mercantil, Gastão Vidigal. Também mantinham ação semelhante o banqueiro Amador Aguiar, do Bradesco, e o advogado Paulo Henrique Sawaya Filho. Este último, assim como o presidente da Ultragaz, frequentava a Oban, fato comprovado pelo livro de visitas do local e tornado público, em 2013, pela Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo.

 

Capitalismo e tortura

 

A relação do empresariado na época da Ditadura e mais recentemente no (des)governo de Jair Bolsonaro foi feita pelo presidente da ADUA, Jacob Paiva. “Quantos empresários  financiaram o 8 de janeiro e as pessoas que estavam à frente dos quartéis, pedindo a volta da ditadura. Com a Anistia, nós perdoamos os torturadores, mas também os empresários. E logo eles se alvoraçaram a tentar de novo a auxiliar um golpe no Brasil, bancando refeição, bancando tendas [às(aos) golpistas]”. O docente frisou ainda que esse processo é uma resposta do próprio capitalismo para as suas crises. “É a preservação da propriedade privada, dos interesses da minoria sobre a maioria, dos donos da terra, dos banqueiros, dos empresários”.

 

E como método para alcançar esses objetivos é usada, muitas vezes, a tortura, afirma o professor Max Pinheiro (INC/Benjamin Constant). Ele frisa que a tortura não foi uma invenção da Ditadura instalada em 1964. “Ela já estava presente. A escolha daquela delegacia para funcionar o Doi-Codi não foi aleatória, era onde funcionava o ‘esquadrão da morte’, comandado pelo delegado Fleury [Sérgio Fernando Paranhos Fleury]. A tortura já está institucionalizada nas forças militares, policiais, em como ela é absorvida e passa por um processo, ficando mais científica, com mais métodos, e não desaparece com o fim da Ditadura, continua”, reflete.

 

Foram citados por Max dois exemplos dessa permanência: a existência de um ‘esquadrão da morte’ comandado pelo secretário de segurança do Amazonas, Klinger Costa, na década de 1990, e mais recente um fato ocorrido em Atalaia do Norte (AM), após a morte, em 2022, do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. “O que foi feito para resolver esse caso foi um absurdo, uma comunidade inteira apeada. E todo o mundo baixou as câmeras, ninguém registrou o que o Exército e a Polícia Federal fizeram com aquela comunidade: sufocamento, spray de pimenta, afogamento, espancamento... Isso, que foi feito com o pretexto de resolver o crime, é um exemplo de como a tortura está institucionalizada nas forças policiais, militares do país. O preço que a gente paga para ter justiça é cometendo outra injustiça”, diz Max.

 

Todo esse panorama de um país com uma tortura institucionalizada evidencia, para a professora Marilsa Miranda (Unir e Regional Norte 1), que ainda se está sob uma ditadura. “O que me toca bastante quando discutimos o regime militar é acreditar que estamos numa democracia. Quando falamos ‘ditadura nunca mais’. Nós estamos numa ditadura de classes, o capitalismo é isso, a ditadura da burguesia contra o proletariado. Nós não saímos da ditadura, só mudou a forma, uma ditadura que parece democracia, uma democracia mutilada que sustenta uma ilusão”.

 

Fotos: Daisy Melo/Ascom ADUA

 



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