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  21/06/2024



“A ditadura para os indígenas começou com a chegada do colonizador”



 

Daisy Melo

 

A ditadura começou para os povos originários brasileiros com a chegada dos portugueses no Brasil. No período da Ditadura Empresarial-Militar (1964-1985), as mazelas sofridas por essas populações foram apenas potencializadas: assassinato, escravidão, tortura, estupro, epistemicídio e grilagem e destruição de territórios. São inúmeros e diversos os impactos desse período sob os povos tradicionais da Amazônia e eles continuam ainda hoje a reverberar.

 

Essas foram algumas das reflexões feitas durante o 43º Encontro da Regional Norte 1 do ANDES-SN. A mesa especial “Os 60 anos do golpe empresarial-militar no Brasil: Reverberações e silêncios sobre os povos originários, comunidades quilombolas e populações tradicionais da Amazônia brasileira” ocorreu no dia 7 de junho, em Parintins (AM). A atividade teve como debatedoras(es) as(os) docentes Danielle Munduruku (IEAA/Ufam), Luciano Teles (UEA) e Sávio Maia (Ufac e Regional Norte 1), e o presidente da Associação Indígena Karapãna (Assika), Joilson Karapãna, e como mediador o professor Tomzé Costa (ADUA).

 

“A ditadura não começou em 1964, mas quando os europeus chegaram”, é o pensamento compartilhado por Joilson Karapãna e Danielle Munduruku. “Ao contrário da história colonizadora que demarca a ditadura para os povos indígenas, a ditadura é desde a chegada do colonizador. Desde que esse território passa a ter uma leitura diferente daquelas múltiplas interpretadas pelos povos que ocupavam esse lugar, ele passa a ser nada mais do que violência, opressão e tudo mais que deriva da ditadura”, afirma a docente.

 

No entretempo do país como colônia e o regime militar, os povos da floresta foram relegados e não eram reconhecidos como legítimos brasileiros. “No movimento indígena, marcamos dois tempos. Antes da Ditadura era abandono, com diferentes formas de inserção na tratativa de acabar com os povos indígenas. Com a Ditadura, é a perspectiva de ocupação da Amazônia, é de extermínio dos indígenas, extermínio mascarado com a ideia de integralização, a ideia de cidadania de povo brasileiro”, explica Danielle.

 

Neste âmbito, o professor Sávio destaca três palavras que definem como foi a relação da Ditadura com os povos originários: genocídio, ecocídio e epistemicídio. “Para nós pensarmos nos efeitos e na longevidade das intervenções militaristas no Brasil, na Amazônia, precisamos fazer isso a partir da visão exógena, de fora para dentro, o racismo impera nesse tipo de relação, ‘nós somos os civilizadores, eles vão receber os benefícios da nossa capacidade técnica, da nossa superioridade, do nosso conhecimento’”.

 

Esses crimes cometidos pelos ditadores contra os povos originários foram documentados no “Relatório Figueiredo”, elaborado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia em 1967. “O relatório é uma grande contribuição e, apesar de ser de domínio público, não é trabalhado em universidades, institutos e centros de formação, é importante que consigamos criar formas de popularizá-lo”, diz Danielle. O documento de pouco mais de 7 mil páginas prova que a Ditadura para os povos indígenas representou, segundo a docente, escravidão, alienação de terras, tortura, estupro, venda de crianças, assassinatos e dinamites atiradas de avião. 

 

Apesar da relevância do “Relatório Figueiredo”, o documento, assim como outros, não traz relatos das próprias populações atingidas. Esse feito é alcançado pelo relatório da Comissão de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas, coordenada pelo indigenista Egydio Schwade. O relatório foi enviado à Comissão Nacional da Verdade (CNV) e transformado no livro “A Ditadura Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari” (2014). “É esse povo que inicia os processos de investigação da Ditadura com relação aos povos indígenas do Brasil. Um processo tardio que se dá a partir de 2012”, diz Danielle.

 

Considerando esses dois relatórios, a docente destaca a modalidade de narrativa da Antropologia que parte da escuta dos sujeitos, das(os) sobreviventes. “Não são os primeiros [registros], mas são aqueles com grandíssima sensibilidade. A nova perspectiva antropológica que traz esse lugar de dor dos indígenas. Para nós, a relação da Ditadura com povos indígenas se inicia aqui, infelizmente. Ela se dá nesse processo. É um marco (....) as narrativas do massacre, é um processo importante para nós por ouvir, pela primeira vez, o próprio povo que constrói essa narrativa, é a chamada ‘memória da violência’”.

 

A matança do povo Waimiri Atroari se deu com a construção da BR-174 (Manaus - Boa Vista), a cargo do Exército durante o regime militar. Em um trecho da rodovia, Danielle lembra que há um memorial em comemoração à abertura da BR e em memória aos 28 civis e quatro militares que morreram durante a construção da via, mas que não cita as(os) indígenas assassinadas(os). “Existe todo um processo de apagamento, e esse monumento está em cima do território sagrado do povo Kinja que foi um dos povos mais massacrados, quase dizimados durante esse processo”. Segundo dados da CNV, 8.350 indígenas foram mortos de 1964 a 1988, destes 2.650 eram Waimiri Atroari.

 

A construção da BR-174 compôs o Plano de Integração Nacional (PIN), que funcionou de 1960 a 1980. Os efeitos sobre as(os) indígenas das obras da rodovia foram ainda agravados com a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina e o início da mineração e do garimpo na região. “O Governo Federal estipulou o território indígena do povo Waimiri Atroari. É o território de concessão, de ‘bonificação’ depois de todos os processos de genocídio, ecocídio, extermínio daquele povo. A BR corta todo o território, desconsiderando a relação desse povo com esse espaço”, diz a docente.

 

“Indígena pacificador”

 

Outro feito da Ditadura Empresarial-Militar foi a cooptação de indígenas para auxiliar no próprio extermínio dos povos da floresta. Esse foi o caso do cacique Manoel Paulino Karapãna, pai de Joilson. Registrado como “trabalhador braçal” na identidade funcional, Manoel atuou na Fundação Nacional do Índio (Funai) por volta de 1965 até 1979 e participou do programa de “pacificação” chamado de “Frentes de Atração” junto aos povos Waimiri Atroari e Yanomami.

 

 

“Meu pai era funcionário da Funai, ele saiu por não mais aceitar carregar corpos de parentes mortos. Quando o helicóptero passava, ele mandava todo o mundo correr para dentro da mata, por quê? Hoje eu trago esse relato de quando o helicóptero passava e meu pai ia dentro, soltava uma bomba no meio da aldeia para matar todo o mundo e depois enterrar os corpos. Muitas aldeias foram dizimadas na Amazônia brasileira, é muito pesado, para mim, falar sobre isso, nós temos famílias, uma vida, natureza, terra, rio, nós queremos viver, não queremos morrer”, relata Joilson.

 

A história de Manoel foi registrada no livro “Tocaram fogo em tudo: eu me calei” (2023), organizado por Glademir Santos, Murana Oliveira e Alice Paulino Karapãna. No material, Manoel narra sobre a participação do Exército na abertura de estradas na Amazônia e a dizimação de indígenas, a resistência do povo Waimiri Atroari, a sensação de medo e o trauma vivido como indígena “pacificador”, fatores que levaram a sua saída da Funai. No relato, ele conta: “só não morri” porque aqueles indígenas “me consideravam”.

 

Joilson dá continuidade à luta do pai e na vida da sua família a Ditadura tem reflexos até hoje. “Eu fui obrigado a sair do meu território para viver na cidade, a fazer uma carta para ser protegido pela Justiça Federal, agora tudo que acontecer comigo e com a minha família, o Estado será penalizado. Isso dói, você não dorme. Por isso que, às vezes, não estamos no movimento, porque não queremos aparecer, não queremos status, não queremos nos autoproclamar como político, como uma liderança indígena da Amazônia”, reflete o presidente da Assika.

 

Assim como a família de Manoel, as heranças malditas da Ditadura permeiam ainda hoje a vida dos povos indígenas. A figura do “capitão”, por exemplo, ainda sobrevive nas aldeias. “O Estado fez uma intervenção dentro do povo criando o ‘capitão’, um sujeito nomeado pelo Estado para atuar como interventor. E ainda hoje temos nos territórios o cacique, o tuxaua e o ‘capitão’. Durante muito tempo, achamos que era um direito hierárquico, a pessoa mais sábia do território, e somente através dos estudos, descobrimos que não. A titulação de ‘capitão’ é uma intervenção do Estado no período colonial”, explicou Danielle.

 

A atuação do “cargo” ganha força com a criação da Guarda Rural Indígena (GRIN) durante a Ditadura Empresarial-Militar. “São parentes treinados para torturar dentro do território. Eles perseguem, eles estupram e infelizmente eles estão lá até hoje, atuando dentro dos territórios. Cada território hoje vem enfrentando processos de estupro de mulheres. São pessoas que ocupam cargos da Funai, que ocupam cargos de poder, mas que são muito influenciadas por esse período”, afirmou a professora.

 

Apesar dos impactos da colonização, da Ditadura e das tentativas de genocídio e apagamento, os povos originários experienciam novas conjunturas e interpretações desse processo, que necessitam de amplo apoio das universidades como importante lugar de produção de conhecimento, ressalta Danielle. “A causa dos povos indígenas não é abraçada pela pesquisa se apenas os nossos corpos entram, mas não as nossas ciências, línguas e formas de reconhecer (...) precisamos fortalecer o Acampamento Terra Livre, a Marcha das Mulheres Indígenas, o Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, o Fórum Nacional dos Professores da Educação Escolar Indígena, e financiar, não dando ‘tapinha nas costas’, é dando dinheiro, pagando passagem, produzindo, publicando e incentivando as pesquisas”.

 

Presença de militares na política merece atenção

 

A ocupação de cargos políticos por militares é uma constante revelada por vários marcos históricos do país, destaca o professor Luciano Teles. “Os militares sempre estiveram envolvidos nas questões políticas do país, intervindo, o que gerou uma cultura política, o imaginário político, que é reforçado inclusive pela imprensa, de que os militares são um poder moderador, o que é equivocado. Nós precisamos atacar esse ponto, essa cultura política da presença dos militares em diversos setores da sociedade, inclusive na universidade”.

 

Para o professor Sávio, o militarismo é uma ideologia e precisa de mais análise da sociedade. O docente ressalta que os militares sempre estiveram no poder no país e continuam a ameaçar a população. “No atual momento, com militares, generais, oficiais prestes a serem presos, eles exercem uma pressão sobre o governo federal que nós não podemos naturalizar, é muito forte; é triste o papel das forças armadas no Brasil e especialmente nas academias, por isso é preciso discutir o papel do militarismo como ideologia”, ressalta.

 

Em termos de disputa política e de projeto de sociedade, o docente da Ufac ressalta que acompanha a intervenção política autoritária um discurso que ganha o espaço público e desqualifica pessoas, ambientes e formas de vida. “É muito forte e infelizmente ganhando a opinião pública que passa muitas vezes a apoiar essas ações, isso é grave”.

 

Considerando esse cenário, um dos encaminhamentos feitos por Teles é pela disseminação das informações. “Vamos compartilhar as pesquisas, a universidade tem esse papel de articular, reconectar-se com os movimentos sociais, o intelectual orgânico. Vamos falar de uma hegemonia cultural para lembrar [Antonio] Gramsci, vamos viabilizar essas ações em espaços informais e formais de educação”, diz o docente da UEA. 

 

A visão exógena do colonizador, chama a atenção Sávio, anula qualquer diversidade de saber. “É a individualização da vida, o neopentecostalismo, por exemplo, convence as pessoas de que elas não vivem em sociedade, que precisam se destacar individualmente para serem premiadas, isso vai atomizando a sociedade”.  Uma das alternativas a essa problemática, na sua opinião, é a união com as(os) jovens. “Precisamos da força dos estudantes, da juventude para mudar a matriz de pensamento do que é desenvolvimento e progresso dentro do capitalismo”.

 

Fotos: Sue Anne Cursino/Ascom ADUA e Valéria Brito/Regional Norte 1



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