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  29/05/2024



“A militância é a razão da minha vida”, diz Ana Maria Ramos Estevão



Foto: Sue Anne Cursino/Ascom ADUA

 

Daisy Melo

 

Ana Maria Rodrigues Ramos era uma jovem estudante de um colégio metodista quando começou a se interessar pelas lutas sociais. Fez questão de reivindicar a mudança da reitoria que impedia ela e suas(seus) colegas de participarem das manifestações de rua contra a recém-instalada Ditadura Empresarial-Militar.

 

Ao ingressar no curso noturno da Faculdade Paulista de Serviço Social em 1969 conheceu integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização criada pós-dissidência do revolucionário Carlos Marighella com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). A partir daí a jovem passou a dividir o seu tempo entre as aulas, a presidência do Centro Acadêmico e a atuação na “frente de massas” e no apoio logístico da ALN, que incluía ações como divulgar e arregimentar membros para o movimento e conseguir locais para esconder materiais e garantir a sobrevivência de pessoas que estavam na clandestinidade. Tudo isso em um período em que já era proibido por lei realizar esses tipos de ações.

 

Devido às atividades “subversivas”, Ana Maria acabou presa aos 22 anos, em 1970, passando pouco mais de 20 dias na Operação Bandeirantes (Oban). O maior centro de terror da ditadura era comandado pelo, na época, major Carlos Alberto Brilhante Ustra e foi onde Ana enfrentou longas sessões de interrogatórios e de violências físicas e psicológicas, ficando inteiramente vulnerável nas mãos do criminoso regime ditatorial, sem nenhum registro oficial de sua prisão.

 

Somente depois da sua passagem pela Oban, a jovem universitária foi levada ao Departamento de Ordem e Política Social (Dops) de São Paulo para executar os trâmites cartoriais e, posteriormente, ao Presídio Tiradentes, local onde foi mantida em cárcere com outras(os) presas(os) políticas(os). Às mulheres era destinada uma área no presídio que ficou conhecida como Torre das Donzelas. A esse nome, Ana Maria Estevão – sobrenome que assumiu após o casamento e a ajudou a ter uma “nova identidade” – faz menção no título do seu livro “Torre das Donzelas Guerreiras e outras histórias”, lançado em 2022.

 

 

Após a saída do Tiradentes em 1971, foi presa mais duas vezes: uma em 1972 para acareações e outra em 1973 por seu envolvimento com o grupo teatral “União e Olho Vivo”, ligado ao Movimento Libertação Popular (Molipo). Com conhecidas(os) mortas(os), desaparecidas(os) e exiladas(os), e sentindo correr alto risco, Ana viajou para o exílio na França em 1974. Lá reencontrou várias(os) companheiras(os) e estudou no Instituto Ecumênico para o Desenvolvimento dos Povos, onde conheceu Paulo Freire, que presidia e era professor na entidade.

 

Anos mais tarde, aquela jovem revolucionária acabou tornando-se professora. Hoje é livre-docente aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp), adjunta da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e militante do ANDES-Sindicato Nacional. Leia a seguir a entrevista exclusiva da ADUA com Ana Maria Estevão, que é categórica: “a militância é a razão da minha vida. Se parar eu morro”.

 

 

O que te motiva a dar palestras, te motivou a escrever o seu livro, a fazer questão de falar sobre a Ditadura Empresarial-Militar e sobre o que você viveu mesmo sendo um assunto tão sensível?

 

Onde me chamarem eu vou. Para mim é uma questão de militância. A motivação para mim é que, mesmo que as palavras de ordem da Comissão da Verdade do ANDES-SN sejam “para que nunca mais aconteça”, “para que não se repita”, “ditadura nunca mais”, isso continua acontecendo, quase acabou de acontecer no antigo governo. Se o Exército não tivesse se recusado a participar, nós estaríamos numa ditadura, com um outro nome, apoiada, eleita, com  aparatos jurídicos, legais, institucionais. A minha motivação passa muito por aí. Isso pode acontecer e continua acontecendo em algumas situações: torturas, mortes, prisões arbitrárias. Basta ver o que acontece nas periferias das grandes cidades, o que a polícia faz com os moradores das grandes cidades, das comunidades, das favelas. Com a população preta e pobre da periferia isso acontece todos os dias. A gente vê no noticiário. E então a gente fala “nunca mais”? A gente tem que lembrar que não foi só na época da ditadura empresarial-militar. E uma outra coisa que me motiva muito é: não é a minha história, é a história de uma geração. É muito importante a gente não “fulanizar”: “ah, o fulano sofreu tortura, pau de arara, choque elétrico”. Não foi o fulano, foi uma geração. E não tem gente que teve mais ou menos sofrimento. Cada um reage à dor da tortura a partir da sua própria forma de se colocar fisicamente, psiquicamente. E não esquecer que exatamente porque não houve punição desde o Brasil Colônia que essas coisas acontecem, que elas continuam acontecendo. Só que não acontece com a classe média, com os intelectuais, com os parlamentares, com setores da burguesia. Muito pelo contrário. Tem parlamentares que são policiais e defendem “bandido bom é bandido morto”. Isso é que marca a presença da violência de Estado na sociedade brasileira, porque tem uma grande parcela da população que aceita. Então é isso: continua acontecendo. Mesmo nessa nossa democracia, a gente continua tendo todos os dias notícias de filhos mortos, desaparecidos. Os indígenas da Amazônia sofreram tortura. Você quer tortura maior do a que está acontecendo com os Yanomami?

 

Tivemos um período recente em que certas pessoas pediram a volta da Ditadura. Como foi para você ver isso acontecendo?

 

Essa geração que foi para as ruas pedir a volta da Ditadura, tem dois componentes: um, é gente que não participou, não teve informação do que aconteceu, do que é a ditadura na forma antiga, que é o governo não eleito, os militares comandando as coisas.  Isso é uma razão. A outra razão é a quantidade de filhos de militares, de policiais que se deram muito bem na época da ditadura. Então tem uma geração que não sabe do que está falando, não viveu, não tem memória por causa do próprio exercício que as escolas aplicaram de esquecimento, de não informação, de não dizer as coisas. Porque a tortura que aconteceu no final da década de 1960 até 1979 até hoje os militares e as famílias deles não assumiram. Eles não dizem que teve tortura. É indizível. “Imagina! Teve uns cascudos”. É assim que eles falam. Tiveram muitas pessoas que se beneficiaram e que veem a ditadura militar como uma coisa boa. O Brasil cresceu 12% ao ano. O Delfim Neto [ministro da Fazenda de 1967 a 1973 e ministro da Agricultura de 1979 a 1984. No último governo militar também foi secretário do Planejamento, controlando o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central] vinha apresentar as estatísticas. Criou-se uma classe média, ela se ampliou, comprou o segundo carro, a casa na praia. E os filhos dessa geração viram isso acontecer. Então para eles não houve torturas e mortes.

 

Talvez até para atender a essa classe que o presidente Lula cancelou os eventos relacionados aos 60 anos do Golpe Empresarial-Militar neste ano de 2024. Como você recebeu essa notícia?

 

Eu vi essa notícia e fiquei com vergonha. Eu fiquei boquiaberta. E não só eu. O jornalista para quem ele estava dando entrevista também ficou perplexo. Ele dizendo: “é melhor a gente vê o que aconteceu no 8 de janeiro” [data em que apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e destruíram os prédios do Congresso, Planalto e Supremo Tribunal Federal em Brasília].  Mas eu tenho a impressão, e eu acho também que eu queria que fosse isso para não ficar tão decepcionada, que ele tem um acordo, um acordo feito entre a presidência e os militares de que para punir os generais que participaram do 8 de janeiro tem que colocar no esquecimento o que aconteceu no dia 1 de abril de 1964. Isso seria uma razão. A outra razão, no meu entendimento, é que isso não é uma coisa só do governo, é algo da sociedade como um todo: lembrar 1964, o que aconteceu, é a sociedade no seu conjunto que tem que querer. Só que sempre foi o PT e os partidos de esquerda que organizaram essas manifestações contra a ditadura. Então eu tenho a impressão de que o Lula respondeu pensando nos militares, nos generais e em todo o pessoal de classe média que estava lá no quebra-quebra: “esses a gente vai pegar. Eles deixam. Eles são a favor que a gente prenda”. Claro, eu ainda não vi nenhum general sendo preso. Eu vou ficar muito feliz, mesmo que seja do 8 de janeiro, que eles respondam: os militares, gente que está no governo, parlamentares... Eu fiquei muito surpresa com a notícia, eu não esperava, até porque o Lula foi preso durante a ditadura. Ele veio para cá inclusive em 1979, se eu não me engano. Então ele sabe do que está se falando. [Na época líder sindicalista, Lula foi mantido preso em Manaus enquanto esperava julgamento por crime contra a Lei da Segurança Nacional].

 

Particularmente, você acredita que a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada durante o governo da presidente Dilma Roussef, colaborou de alguma forma para o golpe contra ela? Mexer nesse vespeiro, no caso? Lembrando que o próprio Bolsonaro citou o Ustra no voto pelo impeachment dela.

 

Eu acho que contribuiu, mas eu também preferiria que ela tivesse recebido o relatório da Comissão da Verdade e tivesse dito: “vamos punir, não importa se eles não estão vivos, mas vamos punir para ser exemplar”.  Mas teve também uma grande parte da bancada da bala, do gado, tudo junto, que não suportava a ideia de uma mulher brava, no sentido de bravura, porque ela não tinha nada de meiguinha, docinho, de donzela, na presidência da república e ainda querendo punir de alguma forma os homens, branquinhos, militares, que tinham a força. Tanto que o Cunha [Eduardo, então presidente da Câmara dos Deputados] que coordenou o processo de impeachment e depois foi afastado, processado. Eu tenho impressão de que foram vários fatores, mas o fato dela ser mulher, eu acho que foi muito forte porque o Cunha e a maioria dos parlamentares naquela época eram muito misóginos.

 

Foi decepcionante o que ela não fez? Eu senti um pouco isso na sua fala. Ter deixado de punir?

 

Ou pelo menos mandar para a justiça comum. É crime de lesa-humanidade. Pelo menos isso ela deveria ter feito. Mas a gente não sabe o que acontece nos bastidores. Eu imagino a pressão, as ameaças...

 

Eu vi que você não gosta muito do termo Torre das Donzelas, até o título do seu próprio livro (Torre das Guerreiras) mostra isso. Explica para gente um pouco o porquê?

 

Eu não gosto porque reproduz um esquema patriarcal, machista. Quando eu estava lá tinha 35 mulheres na Torre. E esse nome “Torre das Donzelas” quem deu foram os presos políticos, os homens que estavam na outra ala. Como se nós fôssemos mulheres na Torre, esperando um príncipe, no cavalo branco para nos resgatar. É ridículo chamar as presas políticas de donzelas, acho que até rebaixa, no sentido de que tira a força da luta dessas mulheres todas. A Olga Benário já tinha morrido. Tem toda uma história de mulheres guerreiras que nunca conseguiram tanta visibilidade como no caso da Torre. Mas eu acho que não é respeitoso, justo. Eu me senti injustiçada. Eu juntei algumas amigas que estiveram comigo na Torre e falei: “gente, eu vou mudar”. E elas concordaram. Não tinha nenhuma donzela lá, nem no sentido literal da palavra, quem era não falava. Eram mulheres que estavam lutando em pé de igualdade com os homens, no comando, que sofreram as mesmas coisas ou pior porque muitas estavam grávidas, muitas foram sexualmente abusadas. O imaginário da sociedade patriarcal, sempre que prende uma mulher, prende em torres como a Joana d’Arc, que ficou presa na torre de Rouen, Ana Bolena, a mulher do Henrique VIII, ficou presa na Torre de Londres. No livro eu traço algumas hipóteses porque o imaginário da sociedade patriarcal prende mulheres em torres, mas eu faço um contraponto: as bruxas voam.

 

 



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