
Foi necessário um trabalho colossal, levado aos limites humanos, para realizar esta síntese, que se torna ainda mais densa ao combinar categorias fragmentárias e estruturais e um autor que não dá trégua ao crítico.
O livro Universidade inacabada: razão e precariedade, de João dos Reis Silva Júnior, que será lançado durante o XXXII Seminário Nacional Rede Universitas/Br (13 a 15/08), na Universidade Estadual de Maringá, é uma ofensiva analítica e política contra os lugares-comuns das reformas universitárias e as leituras medíocres. No entanto, ao descartar os dois cenários – a glorificação do passado da universidade pública e a submissão ao cinismo da tecnocracia – o autor busca fazer uma crítica radical à universidade brasileira como funcional ao capitalismo dependente.
Razão dualística
O texto organiza-se em torno da poderosa noção de “razão dualística”, desenvolvida por Francisco de Oliveira, na qual se cobre a infiltração não antagônica de excelência/precariedade que define a universidade brasileira. A crise da universidade, afirma o autor, não é uma crise: ela funciona em perfeita conformidade com a lógica de uma racionalidade que é exclusivista, hierárquica e oligárquica. É uma modernização conservadora, uma que absorve a tecnologia moderna que a cerca, mas não repudia o arcaico; ao contrário, ela o funcionaliza.
A narrativa percorre três eixos.
No primeiro, a universidade é colocada como legado da modernização autoritária. É um ponto de inflexão entre a existência de certo tipo de universidade antes e depois de 1968, não na direção da emancipação, mas da limitação disciplinar. Departamentalização, racionalização tecnocrática, abolição de um projeto formativo por metas de performance – nada disso levou à democratização – mas ao comando e subordinação. O autor ilustra a forma como essa estrutura persistiu, embora subsequentemente adornada por uma retórica de inclusão que nunca chegou ao cerne doloroso das desigualdades.
No segundo eixo, João dos Reis Silva Júnior revela o processo de captura da universidade pela racionalidade neoliberal. Financeirização da ciência, produtivismo acadêmico, obsessão com rankings e métricas, transformam o trabalho intelectual em objeto de consumo. A pesquisa torna-se capital simbólico, o ensino um serviço, e o tempo dos educadores é roubado com planilhas, comissões e relatórios que sugam o sentido da prática docente.
O autor demonstra, com referências a estudiosos como Leda Paulani e Eleutério Prado, que o que começa a ser valorizado não é mais o conhecimento como é utilizado socialmente, mas como pode prometer rentabilidade futura. Segundo esse regime, a universidade é definida como geradora de valor fictício.
O conceito de precariado universitário adquire densidade analítica. Este livro mostra como bolsistas, adjuntos, pesquisadores sem vínculo e técnicos terceirizados são a espinha dorsal invisível do que é produzido nas universidades. Ricardo Antunes, Florestan Fernandes são chamados a mostrar que essa precarização não é um efeito colateral, é uma engrenagem da máquina e um modelo de desumanização da eficiência. A universidade pública forma seus próprios doutores apenas para descartá-los. Ela cria sujeitos altamente educados para a servidão flexível.
O terceiro eixo diz respeito à dualidade estrutural da universidade. Centros de excelência roçam contra campi abandonados. Pós-graduandos do exterior vivem lado a lado com cotistas cujas moradia, alimentação, ou até mesmo uma bibliografia mínima lhes é negada. Essas políticas de inclusão são representadas como folhas de figueira que ocultam as barreiras sociais e epistemológicas de outrora. A universidade brasileira é, segundo o autor, uma vitrine e espelho, uma vitrine para exibir excelência perante o mundo e um espelho das desigualdades nacionais.
O conceito de “universidade insurgente” é oferecido como resposta à captura da instituição. Mas não é um projeto reformista. O que João dos Reis Silva Júnior sugere é a ruptura com a gestão e neutralidade neoliberais, formando alianças entre estudantes, professores e técnicos baseadas no comum e no crítico. A universidade insurgente pode e deve ser apenas uma nova forma, não restauradora, mas propondo outras práticas de conhecimento baseadas na justiça epistêmica, solidariedade e recusa da servidão institucional.
O livro rejeita o diagnóstico da universidade como “doente” e precisando de cura. Na lógica do capital dependente, afirma o autor, ela cumpre admiravelmente seu propósito. A crítica, portanto, não é que a universidade está sendo mal utilizada, mas que é uma arquitetura como artifício para a gestão da desigualdade. A universidade é incumbida de inclusão, mas trabalha escassez. Ela diz inovação, mas repete exclusão.
Nos diversos capítulos, o autor elenca uma impressionante série de referências. O pensamento de Francisco de Oliveira, Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Leda Paulani, Ricardo Antunes, Valdemar Sguissardi, Michael Burawoy, Nancy Fraser, Terry Eagleton, entre outros, é apresentado com força e consistência. Não há espaço para o ecletismo. Cada autor é convidado a depor sobre uma hipótese ou outra. Cada dado, seja produzido pelo Inep, CNPq, Capes ou IBGE, é concebido como realização empírica de uma tese estrutural.
O diagnóstico é implacável: o Brasil não ergueu uma universidade pública voltada para a emancipação. Construiu uma universidade apta à reprodução das desigualdades. E quando o faz, resiste dentro dos limites da normalidade acadêmica, cedendo às lógicas do financiamento, da avaliação, da governança.
A melhor coisa sobre o livro é que ele nunca idealiza. Não há uma visão nostálgica da velha universidade. O autor descarta essa visão da universidade nos anos 1980 e a crença nas reformas progressistas dos anos 2000. A universidade não se desviou. Foi projetada dessa forma. E é exatamente por isso que reformá-la não é o suficiente. Ela precisa ser reinventada.
A universidade abandonada não é uma tarefa inacabada. É uma instituição que precisa ir. A incompletude de tudo não é uma promessa, mas uma limitação. E é nesse limite que João dos Reis Silva Júnior faz uma reviravolta: da crítica como denúncia à crítica como produção. Da universidade como acampamento da escassez à universidade como território do comum.
Como se enfatiza no prefácio, é corajoso porque não se submete à defesa da universidade existente. Em vez de consentir com a paralisia, exige ruptura. Em vez de assumir que o produtivismo é inevitável, denuncia sua natureza desumanizante. Em vez de acomodar-se à financeirização, propõe sua desobediência.
Ao final da leitura, o leitor não tem respostas fáceis. Mas em cada página encontra o gesto ético e político da recusa. Uma recusa que não é niilista, mas generosa. Que não busca destruir, mas libertar. Que não aposta na reforma, mas na reinvenção.
Universidade inacabada: razão e precariedade constitui, portanto, um livro teoricamente abrangente, um livro escrito com urgência e com um senso de engajamento social. Limitado, é claro, como uma síntese de 3.000 palavras pode ser diante da imensidão que se ramifica no livro. No entanto, essa tentativa foi feita tentando manter o argumento principal da obra: a crítica estrutural à universidade pública brasileira no capitalismo dependente e a afirmação de que uma hipótese insurgente é um horizonte possível.
É um livro perturbador, essencial, que exigirá atenção de todos aqueles que acreditam na universidade – e que querem que ela tenha pelo menos uma chance de servir ao ideal de uma cidadania educada e informada.
*Everton Fargoni é doutorando em educação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
**Texto originalmente publicado no blog “A Terra é Redonda”, em 30 de junho de 2025.
Foto: Jorge Ferreira/Jornal A Verdade
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