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  28/06/2024 - por José Luís Fiori



A “multipolaridade”: uma disputa violenta e indefinida



 

 

É muito comum ouvir políticos e analistas internacionais afirmarem que o sistema internacional está transitando de uma “ordem mundial unipolar e globalizada” para uma nova “ordem mundial multipolar e desglobalizada”.

 

Mas esta equação aparentemente simples esconde uma enorme complexidade, porque a palavra “transição” sugere linearidade, direção e conhecimento do lugar de onde se está partindo e do lugar para onde se está indo, e hoje não está claro nem o ponto em que se encontra a transformação do sistema mundial, nem muito menos o que viria a ser uma nova ordem mundial multipolar.

 

Com relação ao ponto de partida dessa “transição”, o que se pode dizer é que estamos assistindo a um processo de implosão, fragmentação e decomposição de uma ordem estabelecida, e esse processo está se dando de forma desordenada e conflitiva.

 

O mundo não está no fim de uma guerra com ganhadores claros; pelo contrário, está no meio de duas guerras, sem perspectiva de acabar, envolvendo múltiplos atores, em pleno combate, e sem nenhuma disposição de negociar a paz.

 

Em termos muito amplos, pode-se dizer que, de um lado, se encontram várias potências regionais em “ascensão”, e de outro, o bloco das “potências ocidentais” que resistem a dar passagem a essas novas potências regionais ou globais, e não se dispõem a abrir mão da supremacia mundial que conquistaram e exerceram nos últimos 300 anos, pelo menos.

 

Esse enfrentamento está se dando de forma cada vez mais direta e violenta, sem regras ou grandes preocupações com a ética internacional, e sem respeito às “regras” da “economia de mercado”, através da guerra, ou através da manipulação política da moeda, das finanças e da concorrência econômica.

 

Não estamos vivendo um momento de vitória e submissão, nem de negociação e acordo entre países que competem entre si e que se dispõem a negociar uma nova ordenação hierárquica do poder mundial.

 

Pelo contrário, o mundo está em plena conflagração e nenhum país ou conjunto de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo.

 

E não existe o menor consenso sobre eventuais caminhos de negociação, por mais que os líderes das grandes potências mundiais falem da necessidade de uma nova ordem mundial. multipolaridade

 

O que existe de fato é guerra, militarização, decomposição econômica e crise social, e uma perda generalizada das referências éticas construídas pelo Ocidente nos últimos séculos.

 

Armadilha

 

Sobretudo depois que os Estados Unidos e seus aliados europeus caíram prisioneiros da armadilha que eles mesmos montaram na Palestina, sendo obrigados a armar e sustentar o Estado de Israel, mesmo sabendo do genocídio que está sendo praticado contra o povo palestino na Faixa de Gaza.

 

Uma armadilha que vem corroendo a ideia da “excepcionalidade moral” do Ocidente, e erodindo os fundamentos éticos de sua hegemonia cultural dentro do sistema internacional. 

 

No entanto, com relação ao “ponto de chegada” dessa “transição”, não existe o menor consenso nem a menor ideia do que seja ou do que poderá vir a ser exatamente uma nova “ordem mundial multipolar”.

 

O único que sabemos do ponto de vista puramente formal é que uma ordem multipolar não deverá ser igual a uma ordem “bipolar” como a que vigorou durante a Guerra Fria, entre 1945 e 1991; nem deverá ser igual à ordem “unipolar”, que vigorou depois do fim da União Soviética, e da vitória norte-americana na Guerra do Golfo, em 1991/92. 

 

Mas não dá para ir muito além desta especulação formal sem conhecer o resultado das guerras que estão em curso, e sem poder definir quais serão os membros do “clube das grandes potências” dessa nova ordem multipolar.

 

Ninguém duvida de que este clube incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e, talvez, uma União Europeia modificada, militarizada e recentralizada a partir da Alemanha. 

 

Ainda assim, não se sabe se haverá hierarquia e qual será, entre esses países. Se haverá alguma hegemonia interna, ou se todos aceitariam uma configuração horizontal entre poderes considerados equivalentes e equipotentes.

 

É bem possível que esta nova ordenação mundial fosse “mais democrática” do que a ordem unipolar que está sendo destruída, mas não há garantia de que não se transforme rapidamente numa “ordem oligopólica”, monopolizada por um grupo de no máximo seis ou sete grandes potências.

 

Assim mesmo, não é impossível imaginar que pudesse haver também um pacto ou entente entre os Estados Unidos e a China, as duas maiores potências do grupo, desde que elas conseguissem administrar suas divergências e competição à morte, no campo tecnológico.

 

Neste caso, o mundo poderia estar se aproximando da hipótese clássica de Karl Kautsky sobre a possibilidade de um “superimperialismo”, como aconteceu com os deuses pacificados por Júpiter após serem recluídos no Olimpo.

 

De qualquer maneira, mesmo no plano puramente hipotético, é muito pouco provável que isto pudesse acontecer, considerando o grau e a intensidade da competição atual entre as duas superpotências.

 

Tudo isto são especulações, obviamente, porque é impossível prever o que acontecerá. Mas uma coisa é absolutamente certa: é impossível que o mundo transite de forma pacífica e harmoniosa na direção desta multipolaridade.

 

Pelo contrário, o que se vê pela frente é uma disputa sem fronteiras e sem limites de nenhum tipo entre potências em ascensão e um grupo de outras potências que dominaram o mundo nos últimos três séculos e que não querem abrir mão de seu poder mundial.

 

Neste quadro, não há a menor possibilidade que ocorra algo do tipo que algumas teorias chamam de “transição hegemônica”, com substituição regular e periódica de uma potência líder por outra que assumiria o comando econômico e militar do mundo, em lugar de sua predecessora.

 

A China não tem pretensão nem deve assumir um lugar igual ao que é ocupado hoje pelos Estados Unidos dentro do sistema mundial, e a Rússia e a Índia não têm esta pretensão, nem dispõem dos recursos para exercer a função de “polícia militar” do mundo.

 

Mas com certeza, nenhum desses países, e vários outros, como Irã, Turquia, Indonésia, Brasil e África do Sul, não estão dispostos a seguir aceitando o arbítrio das antigas potências ocidentais.

 

Balanço feito, o certo é que não há o menor espaço e disposição de negociação entre as grandes potências. Ao contrário. Por outro lado, não há o menor espaço para uma “guerra mundial” que não venha a ser atômica, e por isso o mais provável é que ela siga sendo transferida ou protelada.

 

O mundo está mudando numa velocidade muito grande, e a ordem mundial do pós-Guerra Fria chegou ao fim. Mas o “Ocidente” deve resistir, e tem poder para tanto; e seja como for, permanecerá dentro do sistema mundial como um dos seus polos mais poderosos do ponto de vista econômico, tecnológico e militar.

 

Nesta hora, olhando para o futuro, o que o se consegue ver, para além dos conflitos imediatos, é um mundo atravessando um período muito longo de turbulência, instabilidade e imprevisibilidade, com uma sucessão de conflitos e guerras locais.

 

E se for isto que se está chamando de “transição para a multipolaridade”, então é melhor “apertar os cintos”, porque a trepidação vai ser intensa, e deve se prolongar por muitos anos ou décadas.

 

De qualquer maneira, durante este tempo de trepidação, que pode se prolongar até a segunda metade do século 21, a defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra o imperium militar global exercido pelo Ocidente, durante os últimos 300 anos da história da Humanidade, mesmo que não saibam exatamente, neste momento, o que virá a ser esta ordem multipolar do futuro.

 

*José Luís Fiori é professor emérito de economia política internacional da UFRJ; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; e do Laboratório de “Ética e Poder Global”.

 

**Artigo publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, 5, maio de 2024.







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