Quero falar de dois filmes de Ken Loach, provavelmente o diretor de cinema em vida mais engajado nas ideias esquerdistas, e assinalar similitudes e diferenças. Os filmes são Eu, Daniel Blake (2016) e Você Não Estava Aqui (2019).
No primeiro a trama gira em torno do personagem-título – um homem que simboliza pessoas de idade avançada distantes da tecnologia digital da qual o mundo contemporâneo está impregnado e aquelas sem poder aquisitivo para ter um produto com essa qualificação. O Estado, que deveria prestar assistência a essa população, é o primeiro a rechaçá-la. Na trama, tanto Daniel como a família de Katie estão em busca de amparo. Ele, um carpinteiro infartado, busca licença médica para aposentadoria; ela, mãe solteira com dois filhos, busca ajuda financeira para moradia. Ambos são engolidos pela burocracia com a engrenagem digital.
O segundo filme apresenta os tentáculos do capitalismo sob uma família. Ricky quer se libertar do patrão. Atraído pelo discurso empreendedor, aceita trabalhar como entregador de encomendas.
O desafio inicial é ter uma van própria ou alugar. Para satisfazer o desejo de “autônomo” e adquirir, em prestações, o veículo, é estabelecido o primeiro impasse familiar: será preciso vender o carro usado pela esposa para trabalhar como cuidadora. Aos poucos Ricky percebe a transformação do sonho em pesadelo devido ao extenuante ritmo para dar conta das entregas e ter um saldo diário compatível para quitar as dívidas.
A aplicação de multas pela empresa devido à quebra das regras impostas e a falta de assistência (“não somos seus patrões; tudo depende de sua dedicação”) depois de um violento assalto sofrido por Ricky fazem com que ele compreenda que caiu numa armadilha. Não há saída senão a de trabalhar mais para não ser preso ou ser considerado infrator. O desespero é a arma do sistema para aprisionar o trabalhador.
Se no primeiro filme é o Estado que exerce seu poder de controlador sobre o cidadão (nem o reconhece como tal!), aqui é o próprio sistema capitalista com sua vertente “moderna” de opressão via “empreendedorismo” que assume esse papel de forma indireta e com o aval do Estado, que negligencia os direitos sociais do trabalhador.
O alerta de Loach é um chamamento à realidade, à encruzilhada na qual os trabalhadores parecem não terem saída. A estratégia do capitalismo é impingir no trabalhador que ele pode ser autônomo e não ter patrão. Com isto, os empresários se veem livres de pagamento de impostos, assistência social e à saúde dos empregados. É a chamada “uberização” do trabalho, onde o que rege a vida do trabalhador é a lógica de cada um por si e contra todos.
Para vencer esse desafio é necessário que a classe trabalhadora se entenda como tal e que sua organização sistêmica seja a base política para a transformação social. Isso depende do grau de pertencimento do trabalhador em sua classe social e da organização política que ela terá na defesa de seus direitos.
*Tomzé é professor aposentado da Faculdade de Informação e Comunicação da Ufam e criador da página Tomzé comenta Cinema!
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