No dia 30 de maio, Manaus foi às ruas contra o PL 490
A tese do Marco Temporal (PL 2.903/2023) exige dos ‘donos’ a comprovação da posse da terra no dia da promulgação (5 de outubro) da Constituição Federal de 1988, mesmo que diferentes estudos antropológicos apontem a presença dos povos indígenas nessas terras há mais de 15 mil anos, antes mesmo deste solo se chamar Brasil. Um dos motivos para não aceitarmos essa tese – que antes de passar para o Senado era o PL 490/2007 – está no direito originário sobre nossos territórios e a memória dos diferentes casos em que povos indígenas foram expulsos de suas terras décadas antes da Constituição de 1988.
Joênia Wapichana, atual presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), afirma que o Marco Temporal é um grande golpe na tentativa de embargar e frear a demarcação tão necessária das terras indígenas no Brasil, que já é garantida no Artigo 231 da Constituição. Wapichana denuncia a falta de cuidado em consultar os povos indígenas sobre as propostas e nos lembra que, sendo o Brasil signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Projeto de Lei sequer poderia estar tramitando.
Docente e indígena Munduruku, Danielle participa das mobilizações
A tese do Marco Temporal, além de ser inconstitucional, objetiva inverter a lógica de interpretação da história, reposicionando as pessoas, colocando o colonizador como dono da terra e o indígena como colonizador. Nega e anula qualquer contribuição dos povos indígenas na ocupação e defesa deste território. Nega nossas práticas de sobrevivência. Nega nossas tecnologias, ciências, epistemes, nossos grafismos, nossos corpos. Nega toda nossa cosmogonia. Dessa maneira, nega ainda a contribuição dos povos indígenas para o planeta.
Mesmo com data do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) agendada para junho deste ano, fomos surpreendidos, no dia 24 de maio, pela votação a favor do regime de urgência do PL 490/2007, realizada pela Câmara dos Deputados. Com a urgência, a tramitação do texto é acelerada e a proposta pode ser analisada em Plenário sem precisar passar por comissões mistas. A deputada federal Célia Xakriabá denunciou a aprovação afirmando que a caneta há muito tempo tem assassinado os nossos direitos e que não se trata de uma pauta meramente partidária, mas humanitária. Em resposta e resistência, o movimento indígena e seus parceiros se organizaram em nível nacional para protestar e denunciar o ocorrido.
Seguindo as orientações do movimento indígena nacional, a Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), juntamente com os demais segmentos e apoiadores (Foreeia, Makira-E’ta, Meiam, Amarn, Copime, Cimi, Cáritas, Piama, ADUA, CSP-Conlutas/AM, entre outros) realizou, no dia 30 de maio, em Manaus, a Mobilização Geral contra o PL 490. Depois de três horas de debates sobre a tese do Marco Temporal, no Centro de Artes da Universidade Federal do Amazonas (Caua), o movimento caminhou até o Largo São Sebastião com faixas e palavras de ordem. Ocupar as ruas é necessário para denunciar e articular um diálogo com a sociedade sobre os prejuízos dessa medida.
Em 07 de junho, dia do julgamento do Marco Temporal no STF, também estivemos nas ruas. Dessa vez, enquanto ocupávamos a Praça da Matriz, no Centro da capital amazonense, nossos parentes ocupavam Brasília em um grande movimento nacional. Clarice Tukano, coordenadora da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn), iniciou nossa manifestação em Manaus entoando um canto sagrado para chamar a atenção para o cuidado da Mãe Terra. Em uma perspectiva dos povos indígenas, nós, mulheres, somos ao mesmo tempo corpo e território. Em outras palavras, existimos como parte e extensão de nossos territórios, que podem ser materiais ou imateriais. Em nossos corpos carregamos e transferimos heranças de saberes e espiritualidades ancestrais. Neste sentido, consideramos a Mãe Terra como a primeira mulher indígena. Quando uma mulher indígena nasce, é parte da Mãe Terra que se expande.
Nestes dois momentos em que estivemos em mobilização contra o Marco Temporal, em diálogo com a sociedade, lembramos as palavras de João Paulo Barreto, pertencente ao povo Tukano e doutor em Antropologia, que, além de nos lembrar que nosso corpo é composto pelos mesmos elementos principais que constituem a terra, não é um corpo “parado”, mas em contínua transformação, em movimento, pois possui todos os elementos que podem gerar vida. Por isso, o corpo terrestre, para os povos indígenas, é entendido como um corpo de mulher: a Mãe Terra. O mundo é o útero da mulher. Cuidar da Terra significa garantia de continuidade da vida. Uma Terra fértil apresenta, como consequência, diversidade de vidas. Esse corpo-mulher precisa ser cuidado o tempo todo. Quando afirmamos que a mulher indígena é corpo-território, enfatizamos que se trata de um corpo político. Quando essa especificidade não é reconhecida e respeitada, diferentes processos de violência são cometidos. Para nós, a primeira mulher violentada foi a Mãe Terra, quando do período do “contato”. Desde então, o desequilíbrio para a manutenção da fertilidade do plano terrestre encontra-se comprometido.
A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), ao publicar na Semana dos Povos Indígenas de 2023 o material “Mulheres: corpos-territórios indígenas em resistência!”, dialoga com a sociedade indígena e não indígena sobre a importância de reflorestarmentes. Trata-se de um grande chamamento. É urgente tentar proporcionar uma nova forma de relacionamento com a Mãe Terra e com todos nós, seres que originam e vivem nela. Possuímos diferentes maneiras de alimentar nossos corpos-territórios. A cultura alimenta nossas identidades, a agricultura alimenta nossos corpos e o viver em comunidade alimenta nossas relações em equilíbrio. Nosso corpo-território precisa estar bem alimentado para que continue fértil. Dizer não ao Marco Temporal é garantia de continuidade de vida, de cuidado com a Terra e de desenvolvimento de uma Educação que priorize o respeito pela Terra, pelo meio ambiente e pela diversidade.
ADUA somou forças aos protestos contra o Marco Temporal
A votação da tese do Marco Temporal pelo STF foi adiada e temos ainda em tramitação o PL 2.903. Em defesa da Mãe Terra e pela garantia e demarcação de nossos territórios, continuaremos em luta e contamos com o apoio de nossos parceiros e de toda a sociedade. O próximo passo está na concretização da III Marcha das Mulheres Indígenas: mulheres biomas em defesa da biodiversidade pelas raízes ancestrais, que será realizada em Brasília, de 10 a 13 de setembro. Dessa maneira, continuaremos ecoando juntas nossas vozes contra o Marco Temporal.
Fotos: Daisy Melo/Ascom ADUA
*Danielle é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Letras na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Pertence ao povo Munduruku, com território ancestral na TI Kwatá-Laranjal, de Borba. Vice-coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia Arando do IEAA/Ufam. Articuladora nacional do coletivo Mulherio das Letras Indígenas. Membro do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam).
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