Para educar uma criança é necessário mobilizar uma aldeia inteira (provérbio africano)
01. Axé! Amém! Assim Seja! Força e alegria a quem segue na boa luta. Entusiasmo e firmeza constante às santidades guerreiras da luta coletiva contra o Dragão da Maldade. Axe! para Glauber Rocha, o mais labiríntico dos brasileiros. Cedo nos deixou, aos 42 anos. Um presente que a Bahia de Vitória da Conquista, de todas as Santas e Santos, nos deu em 14 de março de 1939. Glauber voltou ao seio da Mãe Terra no Rio de Janeiro de todas as contradições, em 22 de agosto de 1981. Glauber evoca São Jorge, o Santo Guerreiro da boa luta, cuja festa pluridenominacional é celebrada em 23 de abril, em comunhão com o Dia Mundial do Livro.
02. Neste 2023, ano em que o Brasil começa a se erguer do “sono da razão”, sono que já estava na mira estético-filosófica de Francisco de Goya e Lucientes, no século do iluminismo kantiano, que São Jorge, Ogum, Salve! Salve!, Santo Universal do Candomblé, da Umbanda, das Igrejas Católica, Ortodoxa, Anglicana, nascido na Capadócia, decapitado no início do século IV e sepultado em Lida, na Palestina Guerreira, nos arme com o ferro da justiça e o fogo heraclítico da resistência e da transformação emancipatória para intensificar e ampliar a luta pelo direito à vida inteligente e à livre manifestação do espírito, que deve soprar onde quiser, conforme a referência joanina. Na itinerância, na liberdade do espírito e na alegria da luta, é preciso organizar a esperança.
03. À celebre e repetida afirmação de Monteiro Lobato, de que uma nação se faz com homens e livros, deveríamos acrescentar: com escola pública de elevado e único padrão, com professoras e professores com direito à formação e salários decentes, com bibliotecas, auditórios, cinema, teatro, espaços livres, formação integral, para que as crianças, todas, pudessem combinar leitura do mundo da vida e leitura da palavra impressa nos livros. Em 12 de setembro de 2019, numa mensagem de lançamento do Pacto Educativo Global, o Papa Francisco recorre à sabedoria de um provérbio africano ao afirmar que “para educar uma criança, é necessário mobilizar uma aldeia inteira”. Em sua Formação do Espírito Cientifico Bachelard fala da necessidade de inverter o devir educativo: a Sociedade dever ser feita para a Escola e não A Escola para a Sociedade.
04. A extrema direita, com apoio, velado ou não, de amplos setores da burguesia, das corporações mediáticas, das instituições, inclusive religiosas, e de parte considerável do povo mentalmente envenenado e mitificado com a crença (para lembrar do irredento Wilhelm Reich) de que ele governa quando vota, multiplicou clubes de tiros e, raivosa, tomada de ressentimento, disseminou ódio contra a cultura, desde a rica e diversa cultura de tradição oral dos povos originários, da população preta e quilombola, até a cultura ocidental de matriz cartesiana. O Brasil vem de um percurso de mais de seis anos de regressão e obscurantismo. Chegamos a um estágio inferior ao que Adorno denomina de semicultura, ou semiformação. Da vida sem ideias, nem ideais. Da consciência que, ao abominar as mediações do entendimento, é dominada pelo registro da reação imediata. Atira para depois pensar, mas não pensa, nem antes, nem depois.
05. Segundo o mestre Feuerbach, sem o qual a formação do Mouro de Trier estaria comprometida em seu iluminismo materialista, quem fala se dirige a pessoas; quem escreve se dirige a espíritos. Depois da invenção dos meios de registro auditivo da fala, a afirmação de Feuerbach sofreu um revés, porque mesmo quem pensa falar somente a pessoas, fala também a espíritos. Ou não? E como falar, se escrever é tão inútil quanto, para pessoas a quem a política do ódio embotou o espírito? Segundo Walter Benjamin, a fala conquista o pensamento, mas a escrita o domina. Mas o que pode a escrita num mundo em que as ditas redes sociais, presididas pela heteronomia da fala, conspiram contra a vida do espírito? A consciência digital, digital porque transferida para o microespaço das extremidades digitais, é cada vez mais refratária à escrita, destituída de domínio sobre a fala.
06. O velho Heráclito, se viesse a falar a consciências digitais, seguramente diria: “também quando ouvem não compreendem, são como mudos. Justificam o provérbio: presentes, estão ausentes”. Hoje, no Brasil, a guerra do Santo Guerreiro Jorge contra o Dragão da Maldade, é a guerra heraclítica, socrática, iluminista, contra as sombras disseminadas pelo poder do obscurantismo, pelo ódio organizado como política, pelo fanatismo religioso, pela afronta à cultura, pela destruição da memória, pela falsificação da história. O que o obscurantismo chama de guerra cultural é na verdade guerra contra a cultura enquanto espaço de emancipação humana; é guerra contra a política enquanto espaço de construção do bem comum.
07. A mais bela definição de Paris, a que sempre volto quando penso nos livros, vem de Walter Benjamin, que se referia à cidade do primeiro governo comunal da classe trabalhadora como um enorme espaço de biblioteca atravessado pelo rio Sena. Assim como para a cadela Baleia, de Vidas Secas, do Velho e saudoso comuna Graciliano Ramos, o paraíso seria um mundo cheio de preás, para mim, seria ver no Brasil multiplicarem-se bibliotecas, dignas desse nome, como espaços qualificados para a leitura do mundo e dos livros, como tão bem preconiza a pedagogia dialógica do grande Paulo Freire. Um Brasil em que a classe trabalhadora assumisse como um dever, conforme pensava Gramsci, a superação dos grilhões da ignorância, tão funcional à dominação burguesa. Salve, Jorge! Salve o Dia Mundial do Livro.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical, eleitor da Chapa 1 nas eleições do ANDES-SN (10 e 11 de maio de 2023) e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE), em Manaus – AM, aos 23 de abril de 2023, na Festa de São Jorge, o Santo Guerreiro, e no dia Mundial do Livro.
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