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  23/03/2023 - por Valerio Arcary



Foi ou não foi uma tentativa de golpe?



 

Há uma polêmica na natureza do 8 de janeiro. O debate exige cuidado. Ela não se reduz à discussão comparativa de semelhanças e diferenças entre a invasão dos palácios bolsonarista, e o ataque impulsionado por Trump ao Capitólio de 6 de janeiro de 2019. O centro da controvérsia mais séria é se o 8 de janeiro foi ou não uma tentativa de golpe de Estado, e se existiu ou não cumplicidade de oficiais das Forças Armadas. Os que discordam da caraterização do 8 de janeiro como um levante golpista são, em sua maioria, liberais, mas a tese tem audiência, também, em círculos de esquerda. Sublinham que: (a) os fascistas brasileiros não eram mais do que uns poucos milhares, em uma marcha caótica e, aparentemente, acéfala; (b) seria, delirantemente, irrealista acreditar que uma invasão desarmada de prédios públicos poderia ser suficiente para derrubar o governo Lula; (c) o objetivo da manifestação não poderia ser outro senão oferecer visibilidade à contestação do resultado das eleições, através de uma manifestação de protesto radical.

 

Esta linha de análise comete dois erros de método: (a) desconsidera a máxima gravidade dos fatos, aquilo que realmente, aconteceu, ou seja, uma semi-insurreição que atacou os três prédios que simbolizam o poder da República, e só se retiraram, três longas horas depois, quando foram desalojados pela força, além da tentativa de caminhoneiros, mais uma vez, de bloqueios de estradas, e de concentração na porta de refinarias para impedir a saída de combustíveis; (b) desvaloriza como irrelevante o que os manifestantes, eles mesmos, pensavam sobre o que estavam fazendo. A manifestação foi, inequivocamente, convocada sob a palavra de ordem de luta pelo poder. Não há outra forma de descrevê-la senão como uma tentativa de golpe de Estado. Esta caracterização é central para o processo de investigação criminalização dos culpados.

 

Aqueles que desfilaram, escoltados pela Polícia Militar de Brasília até os três Palácios, gravaram incontáveis vídeos em que declaravam seu objetivo. Estavam convencidos que a invasão da Câmara dos Deputados e, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal e do Planalto teria o apoio de dezenas de milhões de eleitores bolsonaristas, e seria a fagulha para uma intervenção militar. Podemos julgar que era uma expectativa demencial. Mas essa era a aposta política que abraçaram. Desconhecê-la, desprezá-la ou ignorá-la não é somente um erro de análise. Trata-se de omnipotência ou desonestidade. O perigo da presunção é fatal no estudo da luta social e política. Trata-se de uma armadilha teórica muito comum na escola liberal, mas imperdoável entre marxistas. Massas inconscientes “manipuladas” por lideranças “ocultas” teriam sido arrastadas para ações “amalucadas”. Só uma visão conspirativa da história oferece respaldo a este tipo de análise. A premissa deste método é que aqueles que fizeram o levante contrarrevolucionário pela imposição de uma ditadura militar “não sabiam” o que estavam fazendo. Mas as lideranças liberais educadas e instruídas “sabem”.

 

O argumento mais forte, porém, o mais errado, dos que discordam da interpretação de que foi uma sublevação pela tomada do poder é que a semi-insurreição foi, facilmente, derrotada. Ou seja, julgam a natureza do evento pelos seus resultados. O desenlace de um conflito merece, realmente, valorização na sua avaliação. Mas não deve ser o fator mais importante na análise. Lutas sociais devem ser avaliadas considerando quatro critérios principais, embora não exclusivos: (a) qual é o programa, ou seja, quais são as reivindicações que impulsionam a mobilização; (b) qual é o sujeito social que se colocou em movimento; (c) quem é a direção, individual ou coletiva, enfim, o sujeito político que assume a liderança e, finalmente (d) quais são os resultados ou consequências.

 

Quem reduz a análise aos efeitos faz teleologia, uma forma de pensamento mágico que anula o grau de incerteza que existe sempre presente em toda luta social e política séria. Há sempre, em maior ou menor medida, um campo de possibilidades. Mas estes critérios são somente uma referência teórica. O mais importante são os fatos. Análise séria deve ser sempre uma análise concreta. Os quatro critérios devem estar presentes para construir uma síntese sobre o que realmente aconteceu e, sobretudo, sobre o seu sentido. O 8 de janeiro foi o acontecimento mais contrarrevolucionário no Brasil desde o golpe de 1964. Muito mais reacionário e perigoso do que as reacionárias mobilizações inspiradas pela LavaJato que culminaram com o golpe institucional contra Dilma Rousseff. Foi a antessala da ameaça da guerra civil.

 

Tudo o que sabemos até agora, porque há muito por descobrir, indica que foi uma tentativa de golpe de Estado que apostava na mobilização em Brasília, nas estradas e nas refinarias como faíscas de uma intervenção militar para derrubar o governo Lula. Os protagonistas foram alguns milhares de pessoas de meia-idade, de estratos de camadas médias com lumpens, predominantemente, masculina e branca, com forte presença de militantes fascistas, policiais, militares e familiares, organizados através de redes sociais por um grupo de empresários ligados ao agronegócio, que tinha como direção uma ala da extrema-direita, inspirada pelo bolsonarismo. Sabemos que só foi possível a incrível facilidade com que fizeram as invasões porque houve colaboração policial e militar, antes, durante e, não menos importante, depois do vandalismo, favorecendo a fuga em massa. Tudo indica que com proteção de oficiais militares, senão do próprio comandante do Exército.

 

O que define uma insurreição, tecnicamente, é o assalto ao poder, não o número de insurretos. Nas manifestações das Diretas Já em 1984, quando a população economicamente ativa era estimada em quarenta milhões, algo entre três e quatro milhões de pessoas, senão até mais, saíram às ruas durante três meses. Não foi um movimento insurrecional. Foi derrotado, as eleições presidenciais só aconteceram em 1989, e Figueiredo cumpriu até o fim o seu mandato. No Fora Collor em 1992 foram alguns milhões às ruas em menos de dois meses. Nas jornadas de junho de 2013 as estimativas mais prudentes avaliaram no auge das ruas, também, alguns milhões. Não foram insurrecionais. Mesmo as manifestações reacionárias de 2015/16 de apoio ao golpe institucional mascarado de impeachment contra Dilma Rousseff levaram alguns milhões às ruas, mas não foram insurrecionais. O 8 de janeiro foi.

 

Uma insurreição desarmada tem muito menos possibilidade de triunfar, mas não deixa, por isso, de ser uma insurreição. Acreditavam que o golpe iria triunfar. Esperavam que os tanques iriam sair às ruas. Estavam convencidos que a Festa de Selma era o sinal de “Selva”, a hora da intervenção militar, ou seja, que colunas de tanques “imbatíveis” se uniriam a eles. O cálculo que inspirou a sublevação de 8 de janeiro é que estavam lutando sob a proteção da polícia e das Forças Armadas, que são as instituições que têm o monopólio das armas. Esta expectativa ou fé explica a assombrosa confiança das selfies e vídeos.

 

Quando um levante não tem uma direção que assume, publicamente, a responsabilidade, trata-se de uma semi-insurreição. Mas a acefalia de 8 de janeiro não esconde a responsabilidade do movimento bolsonarista, nem encobre a responsabilidade dos oficiais das Forças Armadas que os protegeram. A descoberta da minuta que poderia ser usada para a dissimulação “legal” de um golpe Estado na residência de Anderson Torres deixa claro quem esteve por trás. Que tenham sido derrotados, até com relativa facilidade, não diminui o perigo que representam, se a investigação não concluir na criminalização de todos os organizadores e inspiradores, em especial, de Bolsonaro, com todas as consequências: a prisão.

 

O perigo permanece porque há vários tipos de derrotas. Assim como seria um erro desvalorizar as vitórias políticas da última semana, seria um erro, também, desconsiderar que o maior desafio está diante de nós. As pesquisas de opinião disponíveis até agora são, ao mesmo tempo, alentadoras e preocupantes. Se elas confirmam uma mudança favorável na relação política de forças, pelo isolamento do bolsonarismo na superestrutura institucional, inclusive no Congresso, elas sugerem que a relação social de forças ainda não mudou, qualitativamente. O peso social do bolsonarismo continua imenso, infelizmente, até mesmo em segmentos da classe trabalhadora. O governo Lula deve ser consciente que a repressão deverá ser implacável, mas não basta. Vai ser preciso avançar, e rapidamente, com medidas de emergência de impacto que melhorem as condições de vida das massas populares.

 

Valerio Arcary*

Professor titular aposentado do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). **Texto publicado originalmente no dia 16 na revista Fórum.

 

 

Foto: CRÉDITO: REPRODUÇÃO/ MARCO ZERO

 

 







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