À primeira vista, o título deste artigo mistura coisas muito diferentes entre si, mas seu objetivo é demonstrar exatamente o contrário: que os acontecimentos das primeiras semanas de 2023 nessas três cidades do “mundo ocidental” têm uma relação muito grande entre si.
Ou, pelo menos, têm tudo a ver com a desconstrução de uma crença, um projeto e uma estratégia que se transformaram na bússola da política internacional dos Estados Unidos depois da sua crise no início dos anos 1970, em particular após o fim do Sistema de Bretton Woods e da derrota na Guerra do Vietnã, em 1973.
Nesse momento, foi criado o Simpósio Europeu de Gestão, que depois se chamaria Fórum Econômico Mundial e se transformaria, nos anos 1990, no lugar de encontro anual de uma nova elite econômica e política mundial que foi nascendo à sombra do processo da globalização financeira e do novo Sistema Monetário Internacional, baseado exclusivamente no dólar e na dívida pública americana, e gerido, em última instância, pelo FED, o Banco Central dos Estados Unidos.
Na virada do milênio, a reunião anual de Davos já havia sido transformada na vitrine onde se expunham as grandes celebridades desse novo mundo, e onde a nova elite mundial debatia os problemas enfrentados pelo projeto da globalização.
Por ali passavam centenas de executivos e tecnocratas das grandes corporações e bancos internacionais, políticos, jornalistas, líderes religiosos, intelectuais orgânicos e dirigentes de organizações não governamentais que analisavam os países, governos e programas para os quais poderiam deslocar seus investimentos e cadeias de produção, que viraram a nova “varinha mágica” do desenvolvimento capitalista dos “países atrasados”.
Aos poucos foi se consolidando um novo grupo de poder ou “burguesia internacionalizada”, cada vez mais autônoma e impermeável com relação aos conflitos locais e às pressões democráticas dos cerca de 200 estados nacionais existentes.
Um dos pontos, aliás, em que o projeto da globalização econômica alcançou pleno sucesso, ao lograr autonomizar quase completamente as decisões dos mercados financeiros internacionais com relação aos governos locais da maioria dos Estados nacionais (com exceção, evidentemente, dos Estados Unidos, e em alguma medida, também da China).
Animadores, drogados e psicopatas
Não foi por acaso que, no mesmo período, a “estatura política” dos governantes nacionais foi ficando menos relevante, sobretudo no Ocidente, onde os políticos tradicionais foram sendo substituídos por atores de cinema, animadores de televisão, esportistas de sucesso, palhaços de circo, alcóolatras, psicopatas e celebridades de qualquer outro tipo que fossem festejadas pelas grandes massas como “figuras rebeldes”, quando na verdade não passavam de “figuras excêntricas” que atuavam, na maioria dos casos, como marionetes dos novos grandes centros internacionalizados de decisão financeira.
O que passou menos percebido naquele momento de virada e mudança da estratégia internacional dos Estados Unidos foi a criação simultânea de uma espécie de “comitê central” das grandes potências ocidentais (mais o Japão), o chamado G7, no ano de 1975, quase ao mesmo tempo em que se instituía um novo sistema internacional de pagamentos, o SWIFT, com sede formal em Bruxelas e dirigido por um comitê formado pelos Bancos Centrais dos mesmos países do G7, além de Suíça, Suécia e Países Baixos.
Um comitê que passou a centralizar todas as informações e a controlar todas as operações financeiras realizadas em todo o mundo, por cima do controle dos bancos centrais de cada país.
E assim o projeto da globalização financeira foi assentando suas bases e impondo sua legitimidade, na medida em que os demais países foram delegando ou sendo obrigados a delegar sua soberania financeira para os bancos centrais desse novo grupo de poder internacional, o G7+, ou SWIFT.
Um movimento de transferência, centralização e controle de informações e decisões que alcançou seu ápice no início da Guerra Global ao Terrorismo, declarada pelos Estados Unidos em 2001.
Naquele momento, o governo norte-americano exigiu de seus principais aliados o repasse do sistema de informações e o poder de decisão, em última instância, dentro do SWIFT, para seu próprio Banco Central e seu Departamento de Justiça, que passaram a controlar e operar uma capacidade sem precedentes de arbítrio e uso de “informações sigilosas”, e de imposição de sanções financeiras, contra todo e qualquer país considerado seu inimigo ou competidor.
Já era então possível ver o que, após o início da Guerra da Ucrânia, ficou absolutamente transparente, mesmo para os menos avisados: o projeto da globalização neoliberal nunca foi apenas um imperativo dos mercados, e esteve sempre associado ao projeto de poder global dos Estados Unidos.
Na verdade, a história da internacionalização capitalista dos últimos 50 anos é inseparável da estratégia de poder internacional adotada pelos Estados Unidos em resposta à sua crise do início dos anos 1970. Uma estratégia que alcançou seu pleno sucesso nos anos 1990, depois do fim da URSS e da Guerra Fria, e após a estrondosa vitória militar americana na Guerra do Golfo.
Uma expressão cabal desta vitória foi a inclusão da Rússia no grupo do G7, em 1998, que passou a se chamar de G8, até 2014, quando a Rússia foi afastada após a intervenção dos EUA e da OTAN na Ucrânia, e depois das respostas dadas pelos russos, com a incorporação da Crimeia ao seu território.
O exato momento em que começa a implosão do projeto e da estratégia da globalização, acelerada logo em seguida pelo início da “guerra econômica” declarada pelo governo de Donald Trump contra a economia chinesa.
Essa fratura aumentou ainda mais após a decisão tomada pelos países da OTAN, no dia de 18 de janeiro, na cidade de Ramstein, na Alemanha, de enviar um contingente de tanques Leopard 2 (alemães) e Abrams (norte-americanos) para a Ucrânia, aumentando significativamente o envolvimento da OTAN numa guerra cada vez mais direta com a Rússia, e deixando a Europa cada vez mais fraturada e distante da utopia da globalização.
Basta ver a rapidez com que os países do G7 abriram mão de um de seus segredos ou fetiches mais bem guardados – o da “neutralidade” da moeda e das finanças internacionais – e passou a utilizá-las como armas de guerra contra a Rússia, de alguma forma também contra a China.
Neste sentido pode-se afirmar, com toda certeza, que a busca da primazia militar mundial por parte dos Estados Unidos foi o que acabou destruindo seu próprio projeto econômico de globalização neoliberal.
Não por acaso, neste ano de 2023, o Fórum Econômico de Davos escolheu como tema de discussão o problema da “cooperação em um mundo fraturado” e o esvaziamento notório da reunião deixa claro que essas fraturas já são irreversíveis.
Não há mais um governo sério no mundo que ainda acredite ou aposte no “futuro da globalização”, e todos estão se armando para enfrentar um longo período de retorno aos seus próprios espaços econômicos nacionais e regionais.
Entre o projeto de poder e primazia militar global e o projeto dos mercados autorregulados, ganhou o projeto do império que acabou levando o mundo a uma guerra quase permanente, a partir de 2001, e a uma guerra europeia que deverá se prolongar por muito tempo ainda, e sempre na beira de uma catástrofe nuclear.
O problema, contudo, é que as consequências mais nefastas dos últimos 50 anos de globalização não param por aí.
O próprio sucesso da desregulação e internacionalização dos mercados, e da acumulação exponencial da riqueza privada, acabou provocando, ao mesmo tempo, um aumento geométrico da desigualdade de riqueza entre países, classes e indivíduos, e o fortalecimento – como já vimos – de uma “burguesia global” que cresceu, nesses 50 anos, de costas para suas sociedades de origem, mas com um enorme poder de mando frente aos seus Estados nacionais.
E isto contribuiu decisivamente para o esvaziamento das instituições democráticas tradicionais, que foram perdendo legitimidade frente às grandes massas da população excluída da festa da globalização, atropeladas, além disso, pelos processos de suas desindustrializações nacionais e desmontagem de suas legislações trabalhistas e organizações sindicais, com o crescimento simultâneo de um imenso lumpenzinato, sem identidade coletiva ou nenhuma imagem social e utópica de futuro.
Foi por essa mesma trilha que se perderam os partidos social-democratas, e de certa forma, a esquerda em geral, cada vez mais fragmentada e dividida entre suas múltiplas causas e utopias comunitárias.
Revoltas fascistas
Por outro lado, este mesmo contexto global tem incentivado o aparecimento e expansão das “revoltas fascistas” que se multiplicam por todos os lados, destruindo, quebrando e atacando a tudo e a todos que eles consideram “cúmplices do sistema”, incluindo os Estados nacionais, que perderam sua eficácia dentro dessa ordem econômica neoliberal que vigorou nos últimos 50 anos – ver nota.
E é aqui que se inscrevem também os ataques contra os palácios dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023.
Uma explosão de barbárie fascista e paramilitar que lembra formalmente o ataque ao Capitólio, mas que no caso brasileiro apareceu como último capítulo de um governo absolutamente caótico e autodestrutivo, que logrou juntar sob uma mesma tutela militar de extrema-direita, o fanatismo religioso, a violência fascista e um grupo de economistas ultraliberais que mais se pareciam com “fantasmas de Davos”, correndo atrás de um mundo que já acabou.
Quando se olha desta perspectiva para o que aconteceu no início do ano de 2023, em lugares tão distantes como Davos, Kiev e Brasília, consegue-se entender melhor o que há de comum entre a violência que está destruindo a Ucrânia e a violência dos que destruíram os palácios de Brasília.
Em claves diferentes, são produtos do mesmo desastre provocado por uma utopia econômica que foi atropelada e destruída pela disputa de poder global entre as grandes potências, e sobretudo, pela expansão permanente do poder militar dos Estados Unidos, que foram – paradoxalmente – os grandes “inventores” e maiores beneficiários do projeto da globalização neoliberal.
Foi por isso que, em 2023, as luzes de Davos se apagaram sem deixar nenhum brilho e suas celebridades foram saindo e desaparecendo da Montanha Mágica, em silêncio e cabisbaixos.
A festa acabou, e o “Homem de Davos” (1973-2023) morreu, nas trincheiras da Ucrânia, nas barricadas de Brasília e em tantos outros lugares do mundo onde avançam a desigualdade econômica, as fraturas sociais, as divisões geopolíticas e a violência fascista provocadas, em última instância, pela crença cega nos mercados autorregulados e globais. Mas atenção, porque se o “Homem de Davos” morreu, o desastre que ele deixou atrás de si deve atormentar o mundo ainda por muito tempo.
Nota: Uma tendência que podia ser percebida muito tempo atrás, na década de 90, no momento de auge e grande sucesso aparente do projeto da globalização, como se pode ler num texto nosso de 1994: “O que vem se afirmando como como consequência do projeto de globalização liberal e como efeito do esvaziamento da social-democracia, é , por um lado, a barbárie, e por outro, variadas formas de um nacionalismo fascista que Charles Mayer chamou do “territorial populismo” referindo-se a Berlusconi, na Itália…”.
*José Luis Fiori é professor emérito de Economia Política Internacional da UFRJ, coordenador do GP do CNPq Poder Global e Geopolítica do Capitalismo e do Laboratório de Ética e Poder Global, do Nubea/UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).
**O texto foi publicado orginalmente no dia 1 de fevereiro de 2023 em www.extraclasse.org.br
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