Na última semana, o governo eleito e a sociedade civil brasileira se viram às voltas com o embate entre aqueles que veem a necessidade de aprovar um orçamento em que caibam políticas sociais, os apologetas da austeridade e os sacerdotes do fisiologismo. Os primeiros reivindicam a destinação de parte das receitas públicas para a diminuição da tragédia social criada pelo governo que se encerra. Os segundos clamam pela ação redentora do Estado, fonte da manutenção e aumento de sua lucratividade. E os terceiros professam sua fé inabalável na mão divina do Estado, provedor de suas clientelas e contas bancárias.
Como referência para o embate estava a discussão sobre o “orçamento secreto”, dispositivo criado pelo governo civil-militar do ex-deputado-capitão-reformado Bolsonaro, para gerir, com a Câmara de que foi membro por 28 anos, a destruição nacional.
Muito se disse sem, contudo, responder uma pergunta preliminar: o que é mesmo secreto no orçamento público?
Orçamentos são estimativas de receitas a arrecadar e despesas a fazer no decorrer de um período. Os meios e as fontes de arrecadação, de um lado, e a destinação dos gastos, de outro, são as chaves para entender o sentido da política orçamentária, do modo pelo qual se arrecadam e se gastam os recursos disponíveis.
No embate, ganharam corpo as perspectivas da grande imprensa e dos experts do main stream econômico. Daí caber outra pergunta: qual é o objeto privilegiado de suas análises quando tratam da “questão orçamentária”?
O primeiro objeto são os impactos da arrecadação estatal sobre as grandes corporações (financeiras, agropecuárias, industriais e dos serviços, em geral). Isso se explicita na monotonia da discussão em torno da “carga tributária”; e o segundo é o gasto público com o funcionalismo e com as empresas estatais. Daí que, como desdobramento, a reforma tributária e a reforma administrativa adquiram centralidade. Essa é a pauta.
Partindo dessa delimitação, constroem a imagem do Estado como grande arrecadador e péssimo gastador, pois se o vê como uma empresa que, apesar de “capitalizada”, desperdiça recursos com privilégios concedidos a algumas camadas do funcionalismo (judiciário e legislativo, em particular) e com subsídios (como os relativos à Zona Franca de Manaus).
Privilégios há e subsídios também. Mas a quem interessam?
A resposta trivial é: aos imediatamente beneficiados que conseguem reproduzir e até melhorar suas condições de vida. Então, parte do funcionalismo e do empresariado de regiões periféricas politicamente compõem o arranjo de forças que sustenta a ineficiência e o “atraso” nacional.
Em qualquer caso, é como se os problemas do país se originassem de um Estado incompetente, permissivo, cuja prodigalidade se destina a privilegiar certas camadas do funcionalismo e de empresas localizadas em regiões consideradas periféricas na dinâmica do capitalismo tupiniquim.
O que foge à análise?
Foge tudo aquilo que diz respeito à destinação de quase 50% do orçamento público, que vão para o setor financeiro privado com o fim de rolar a dívida pública, interna e externa, e os subsídios concedidos às grandes empresas e corporações situadas nas regiões politicamente centrais do Brasil.
Essa é a parte realmente secreta do orçamento, que envolve uma “política de privacidade” semelhante àquela proposta por plataformas digitais como Google e Facebook. Nesse caso, contudo, as vezes dos algoritmos são feitas pelos compromissos, tácitos e explícitos, dos apologetas da austeridade e dos sacerdotes do fisiologismo.
A grande imprensa e os experts main stream se postam como verdadeiros guardiões do segredo. Sua estratégia implica duas táticas: o estardalhaço em defesa das contrarreformas tributária e administrativa, cujo fim é fragilizar as políticas sociais; e o silêncio absoluto sobre a concentração de renda e a privatização do orçamento, cujo propósito é preservar os interesses dos que – faça ditadura, faça democracia – sempre ganham.
É um segredo de Polichinelo.
*Marcelo Seráfico é professor da graduação e pós-graduação do Departamento de Ciências Sociais da Ufam.
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