“… desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia” (Adorno, 1971/2003).
No contexto atual, precisamos redobrar nossos compromissos com os elementos da educação que mantêm a vitalidade da democracia.
A democracia precisa da educação e a educação precisa da democracia, pois ambas possuem uma grande capacidade libertadora, humanizadora e racional.
Já a educação baseada, fundamentalmente, na lógica dos mercados cria uma estupidez gananciosa que põe em risco a própria existência da democracia e, certamente, impede a criação de uma cultura de cidadania.
Pensar a educação para uma cidadania democrática implica pensar sobre as nações democráticas, pelo que lutam, qual projeto de desenvolvimento se comprometem.
Defensores de antigos modelos desenvolvimentistas geralmente afirmam que a adoção do desenvolvimento econômico trará, por si só, mais saúde, mais educação, redução da desigualdade social e econômica. Na verdade, uma análise profunda revela que esse modelo não entrega o que promete.
Vários pensadores contemporâneos, como Martha Nussbaum (Universidade Chicago), advertem que estamos em meio a uma crise de enormes proporções e de grave significado global: “a crise mundial da educação”.
Edgar Morin referenda que “não é unicamente uma crise econômica, aquela que começou em 2008, mas é uma crise de civilização, das relações humanas. É uma crise de mentalidades, uma crise da humanidade”.
E o papel da educação, segundo Morin, é de ajudar os estudantes a enfrentar problemas da vida, especialmente nestes momentos de crise.
Ainda neste contexto de crise, o professor António Nóvoa (Universidade de Lisboa) adverte que o “mercado global da educação” quer tirar o máximo de proveito da crise atual. Este mercado da educação ancora-se na lógica do “solucionismo tecnológico” e do “consumismo pedagógico”.
Esta indústria aposta no digital, com ofertas privadas, com produção de conteúdos, materiais e instrumentos de gestão para a educação pública e privada. Empresas educacionais mercantis pressionam, inclusive, para professores tornarem-se investidores no mercado de ações dos próprios grupos que trabalham enquanto educadores.
A barbárie é contagiosa
Este contexto de crises, associada à produção da ignorância e de diversos negacionismos, pavimenta o caminho para a barbárie.
E, evitar a barbárie ou mesmo desbarbarizar, tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia, afirmava o filósofo Theodor W. Adorno, na obra A educação contra a barbárie, já em 1968.
E ele entendia a barbárie como “algo muito simples, ou seja, estando a civilização no mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontram atrasadas de um modo particularmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por […] um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir […]”.
Bernard Charlot, professor emérito da Universidade Paris-8 e atualmente professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), pertencente à “geração de 1968”, pois participou daquele movimento estudantil, lançou recentemente um livro questionador: Educação ou barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea.
Já nas primeiras páginas enfatiza que se realmente queremos transformar a escola, não será com algumas ilhas de sobrevivência e algumas pessoas admiráveis, mas com os professores “normais”, presos nas múltiplas contradições da sociedade contemporânea.
Critica a falta de importantes debates sobre a educação nesta sociedade contemporânea e o deslocamento das discussões sobre temas secundários, como: o desempenho em ranking internacionais (Pisa), a neuroeducação, o transhumanismo, as técnicas digitais de comunicação e de cibercultura, implementação de chip no cérebro que permitirá ao pós-humano escapar do processo de aprendizagem, entre outros.
O educador francês alerta que, enquanto os discursos que dominam o cenário da educação estão focados na eficácia e no desempenho, outros, mais ou menos fanáticos, inspirados por convicções religiosas, nacionalistas, racistas, procuram impor uma hierarquia do ser humano – a parir de critérios tradicionais de dominação, ou como uma contra hierarquia produzida por aqueles que foram vítimas de discriminação.
Para o professor, sejam presidentes de países ricos, sejam doutrinadores de países pobres, esses novos bárbaros, senhores da definição de quem merece viver, tem um profundo ódio para com a educação.
E adverte: a barbárie é contagiosa.
A fraqueza da moral
Nesta obra, Bernard Charlot, propõe a ideia de que devemos reintroduzir a questão do homem (do ser humano) no debate na educação e propõe uma antropopedagogia contemporânea.
Com base em pesquisas, de forma crítica, defende a ideia de que o “próprio do homem” não é uma especificidade individual, mas a própria existência de um mundo humano, só é possível pelo acúmulo, de geração em geração, que, por sua vez, permite a educação.
Nesta perspectiva do ser humano, em recente entrevista, o filósofo Luc Ferry, ao ser questionado sobre sua afirmação de que o “ódio é talvez maior do que o amor no ser humano” e de que o “século 20 foi genocídio atrás de genocídio”, esclareceu que não acredita na existência do diabo, mas, sim, na existência do diabólico ou demoníaco.
“Sempre me impressionei com a fraqueza da moral baseada na convicção de que o homem é bom por natureza. Os animais ferem uns aos outros, mas não tomam o mal como um projeto. Entre os humanos, pelo contrário, o mal radical ligado ao ódio não consiste em “fazer o mal”, mas em tomar o mal como um projeto – o que é bem diferente”, pontuou.
O filósofo francês cita, como exemplo, que o mundo animal parece ignorar amplamente a tortura.
Por outro lado, há um museu em Ghent, na Bélgica, que nos deixa pensativos: o museu, justamente, da tortura.
Lá você pode contemplar os surpreendentes produtos da imaginação humana nessa área: tesouras, facas, alicates, queimadores, esmagadores de cabeça, puxadores de língua, trituradores de dedos.
O ódio é inútil
Para Ferry, o ódio demoníaco, por ser de outra ordem que não a da natureza, escapa à lógica do utilitarismo. Ele é inútil e até contraproducente.
É essa disposição antinatural que lemos no olho humano: ao contrário da lagosta ou do pássaro, o olho humano não é um espelho que reflete a exterioridade, mas a interioridade. Podemos ler tanto o pior como o melhor, tanto o ódio e como o amor e a generosidade.
Portanto, ao nos questionarmos, para que serve a educação na sociedade contemporânea, lembremos da resposta do literário e ensaísta russo-americano Mikhail Epstein: a educação serve “para educar humanos, por humanos, para o bem da humanidade”.
Teoricamente, ele apelava à humanidade dos estudantes e dos professores, mas precisamos estender a todos os nós, seres humanos.
No Brasil atual, a educação para a cidadania implica compromisso com a efetiva participação e com a democracia.
O poder deve não só emanar do povo, mas ser exercido pelos cidadãos diretamente e através de seus reais representantes nas estruturas do Estado.
Portanto, a democracia nos compromete com o bem comum e com a formação de uma nação, de um país, de cidades, comunidades e um Estado onde todos sejam sujeitos e protagonistas.
A educação é para gente, para pessoas, enquanto espécie humana, ou mais precisamente, enquanto gênero humano (homo).
E a educação não ocorre só nas escolas e nas universidades. Ela ocorre na cidade, na polis e em todos os ambientes públicos, nos diversos espaços e coletivos de convivência, como: nas famílias, nos condomínios, comunidades, empresas e organizações diversas.
E é justamente no espaço público comum da escola que a democracia precisa estar presente, sendo praticada, vivenciada, respeitando o outro, o diferente, o adversário.
Não podemos sucumbir à ignorância e ao medo. Educação e democracia são a melhor escolha para nossa sociedade. E é necessário fazer esta escolha com consciência e humanidade no processo eleitoral. Ditadura e tortura NUNCA MAIS! “Democracia tem que nascer de novo a cada geração, e a educação é a sua parteira” (John Dewey)
* Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.
** Artigo publicado originalmente em www.extraclasse.org.br no dia 5 de setembro de 2022.
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