Nicolai Gogol (1809-1852) escreveu uma peça teatral, na verdade, uma comédia que refletia bem o contexto social e político da Rússia no século XIX. Enquanto, na Europa Ocidental, Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Giordano Bruno e Johann Kepler haviam pesquisado, provado e comprovado que a Terra e os outros planetas com seus satélites giravam em torno do Sol, os filósofos do Iluminismo, como Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Diderot e Jean d’Alembert haviam enunciado que a sociedade era obra dos seres humanos e não de nenhum deus. Cientistas, como Louis Pasteur, haviam pesquisado, provado e comprovado que as doenças eram provocadas por vírus ou bactérias e não por vontade de deus ou do demônio e recomendavam práticas de higiene não só de médicos como de seus pacientes. Alguns cientistas foram ainda mais longe, criando vacinas para prevenir doenças letais, a Revolução Industrial (1780), na Inglaterra, e a Revolução Francesa de 1789 haviam ensinado que a sorte, o destino, o futuro, o desenvolvimento, a melhoria ou a piora da sociedade eram responsabilidades dos próprios seres humanos e não de nenhuma divindade. Na Rússia, os seres humanos insistiam em viver na crença de que o mundo feudal era o melhor dos mundos e que a sociedade era produto da fé e não da razão, a religião era o sol maior de suas vidas e a doutrina religiosa, construída por sacerdotes e patriarcas antigos e ignorantes, era o melhor conhecimento do mundo. Por isso, a maioria das pessoas das classes privilegiadas, favorecidas e desfavorecidas russas não via necessidade de pensar em mudanças.
No século XIX, a Rússia era governada pelo czar Nicolau I. Seu reino era administrado por funcionários corruptos e incompetentes em todos os setores públicos e privados. Políticos, juízes, professores, médicos, padres, policiais, latifundiários, comerciantes, chefes de polícia, aposentados, prefeitos, governadores, e, naturalmente, czares. Todos trabalhavam como se seus setores funcionais fossem suas propriedades e, por isso, cobravam propinas para fazerem suas obrigações e deveres.
A peça de Gogol “O inspetor geral” retrata essa situação em uma aldeiazinha, quando o prefeito é alertado por uma carta de que um inspetor geral, viajando incógnito pelo país, poderia chegar a qualquer momento para verificar, analisar as atividades desenvolvidas pelos funcionários para atender à demanda da população da referida aldeia. Esses funcionários entram em pânico. Reúnem-se para deliberar o que fazer. Nesse ínterim, chega, na aldeiazinha, um viajante que é confundido com o “o inspetor geral”. O viajante era um vigarista e se faz passar pelo “enviado”, o aguardado “inspetor geral”. No final, os corruptos descobrem que se equivocaram. O viajante não era o “inspetor geral”.
Esta história nos faz lembrar o país colonizado em que vivemos, pois sua história está mais para uma farsa ou, talvez, uma tragédia, muito similar à peça de Gogol. A história desse país colonizado pode ser definida como um país construído de corrupção, distorção, mentira, falsificação desde sua invenção. Descobrimento de terra e de habitantes que eram desconhecidos dos invasores portugueses. Metodologia de ignorância propositada dos conhecimentos desses habitantes sobre o meio em que viviam há milhares de anos. Práticas de violência, iniquidades, hipocrisias e desumanidade cristã contra os nativos. Práticas de corrupção dos funcionários do rei desde o momento em que chegaram para administrar terras alheias. Invenção de independência para beneficiar as classes favorecidas que sempre serviram como lacaios dos colonizadores. Invenção de República para continuar gerindo a terra como uma feitoria colonial. Ensino de ciência distorcida e mistificada com visões religiosas construídas há mais de seis mil anos por sacerdotes e patriarcas ignorantes. Práticas políticas corruptas por parte de funcionários (preferencialmente) do alto escalão, juízes, políticos, militares, chefes de polícia, secretários de governo, generais, ministros, policiais que legislam (principalmente) em causa própria e não pela causa democrática. Percebemos que o país colonizado, chamado Brasil, parece-se com a Rússia do século XIX ou a China do tempo dos mandarins, daí porque certos luso-brasileiros e descendentes de estrangeiros, conservadores e adeptos da liberdade para corrupção, não gostam do comunismo ou do socialismo que executa sem parcimônia ladrões do erário público.
Nesse contexto, os vigaristas, falsários e embusteiros adoram seguir carreiras públicas. Surgem jurando que pretendem acabar com a corrupção se forem eleitos. O inacreditável é que existem eleitores que adoram ser enganados por vigaristas, falsários e embusteiros. Não se perguntam como pode um vigarista ou um falsário ou um embusteiro acabar com a corrupção depois de passar a vida toda apropriando-se de recursos alheios, públicos? Não percebem que tais personagens deveriam ter sido presos há muito, muito tempo. Políticos, padres e pastores vigaristas, juízes, advogados e médicos ignorantes, generais e ministros falsários, delegados e policiais corruptos precisam ser rigorosamente
investigados por um inspetor geral. Na epígrafe da peça de Gogol está escrito: “A CULPA NÃO É DO ESPELHO SE A CARA É TORTA”
*Isaac Warden Lewis é professor aposentado da Faced/UFAM.
Arte: Latuff
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