Devemos aceitar que matem nossos camaradas? Lutem conosco numa união antifascista! (Bertolt Brecht)
01. Em 10 de fevereiro de 2022, data em que Bertolt Brecht marcaria 124 anos de uma existência subtraída aos 58, a Professora Conceição Derzi, do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas, fez a transição do lugar da imanência, feita de contradição e contingência, para o não-lugar (utopia) da almejada transcendência, tecida do que seria da ordem do harmônico e do necessário. Se algo há em comum nessas três existências, contingenciadas e materializadas no devir histórico de Bertolt Brecht, Paulo Monte e Conceição Derzi, é a recusa do falso contentamento burguês, da fala e do agir omissos.
02. No lugar celeste houver espaço reservado às almas irredentas e inquietas, à fumaça dos charutos de Bertolt Brecht e dos cigarros de Paulo Monte, juntar-se-ão agora as tragadas falantes da nossa generosa e irreverente Conceição Derzi. Eles e ela nos deixam cada vez mais carentes da necessária contraordem. Ao combinar as duas datas, sob a épica direção da arte de Brecht e à distância da mistificação do teatro dramoso, Paulão e Conceição já prenunciam uma reviravolta filosófica e comunicativa na imobilidade dos palcos celestiais.
03. Paulão e Conceição sempre foram vozes dissonantes, pouco ouvidas, quando não objeto de desdém no interior da Universidade Federal do Amazonas, que não é exceção à regra que normatiza e naturaliza o produtivismo adoecedor na universidade brasileira, tanto pública quanto privada. Militante irredenta, direta, polêmica e verdadeira em seu falar e agir, Conceição Derzi deixa entre nós a marca de uma existência que nunca se furtou a tomar posição diante dos debates e desafios do tempo histórico. Quem a conheceu, conheceu uma mulher de luta e avessa à neutralidade.
04. Esta data, 10 de fevereiro, faz a mediação entre 1898, ano do nascimento de Brecht, e 2022, ano em que Conceição partiu, seguramente contra sua vontade e sem nosso consentimento, mas com algo de épico, inclusive pela coincidência das datas entre o nascimento do dramaturgo e a morte da educadora. Porque viveu e morreu com intensidade, sua memória permanecerá. O que é morno, nos diz o livro do Apocalipse, é digno de vômito. Hostil a meias palavras, Conceição era destemida, resoluta e fazia da contradição o alimento heraclítico de sua luta classista e feminista.
05. Por tudo isso e mais ela não escapará ao olhar afinado do velho Brecht. Por força de profana intuição, imagino uma parceria épica entre Paulo Monte e Conceição Derzi para convencer o maior dramaturgo do século XX a escrever, com a potência reflexiva do distanciamento, a grande peça do século XXI e, desde Manaus (agora vista do alto), jogar lux in tenebris desse Brasil sob as sombras do fascismo requentado. Transfigurados pela poética libertária de Brecht, Paulo Monte e Conceição Derzi serão agora educadores épicos em tempos sombrios.
06. É somente na ordem do tempo e com o povo, que tem fome de pão e sobretudo sede de justiça, que podemos tecer o espaço da educação popular. A justiça, nos diz Brecht, é o pão do povo. O teatro, já nos ensinou ele, é uma arma filosófica, que potencializa a reflexão. Sim, é necessário fustigar com arte e filosofia os artifícios dos dramas da sociopatia e psicopatia burguesas. Contra a excitação doentia do teatro epidérmico, prisioneiro que é da distração mistificadora e carente de estética, Brecht propõe a criação artística protagonizada pela força épica e coletiva do povo.
07. O teatro de Brecht, o mestre de A exceção e a regra, toma distância da indigência ética do mundo burguês e afronta com as armas da reflexão e das mediações do distanciamento a miséria axiológica em que vive e se enreda a dramaturgia, sempre falsa, da representação burguesa da vida. Brecht não representa, se apresenta pleno de presença e isento dos ditos bons sentimentos e da má consciência da moral burguesa, sempre objeto da ira (e da mira) filosófica e comunicativa de Paulo Monte e Conceição Derzi. Resta a certeza de que Paulo Monte, sob o olhar de Brecht, recebeu Conceição Derzi com um abraço amazônico de alegria e indignação.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
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