Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filosofia, embora pervertida, que, se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação (Karl Jaspers, 1883-1969).
01. Na Gaia Ciência Nietzsche fala que cabe aos filósofos prejudicar a estupidez, dela subtrair a sua “boa consciência”. Nietzsche não era um leitor entusiasta de Hegel, para quem a “a consciência infeliz” corresponde àquela figura dialética indicativa da contradição da consciência se experimentar, simultaneamente, como consciente do mundo e de se afirmar como espírito. Noutros termos: quando a consciência se apreende como conceito. Sempre ir pelos conceitos, afinal para Kant é sempre “prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes”. A “boa consciência” da estupidez na Gaia Ciência nietzschiana é cognitivamente imune ao estado da “consciência infeliz” referida na Fenomenologia do Espírito hegeliana. O Brasil de 2021 tornou-se abrigo seguro para o contentamento e o alargamento da “boa consciência” da estupidez ou da consciência feliz, blindada e imporosa à contradição dialética própria da “consciência infeliz”. No Brasil de 2021 Hegel e Nietzsche não se criam, mas são necessários.
02. Como envergonhar a estupidez da consciência feliz? Como introduzir infelicidade e sentimento de vergonha numa consciência que, despossuída de si, vive do cultivo de si mesma sem si mesma, para recorrer a Adorno, que tanto quanto Nietzsche não tinha relação de boa vizinhança com Hegel? Adorno, a compor uma tríade com Hegel e Nietzsche, também não se cria neste Brasil cada vez mais apoucado. Estaremos fadados a compor um samba triste, raso, sem graça e bem abaixo do estatuto musical de um tango ou de um fado? Um samba fardado? A tradição de resistência do samba não merece tal regressão musical. Se possível fosse tal samba, o título caberia ao saudoso Millôr Fernandes, ao afirmar há tempos, sob ordem de coturno: “como vale o verde no verde vale”. Em 2021 nosso vale já não está tão verde. Alargam-se as fronteiras das cinzas sobre a Amazônia e o Brasil. E como valer-se da Vale e de sua publicitária campanha de compensação ecológica depois que tornou ácido um rio Doce e alargou nosso vale de lágrimas? Por faltar má consciência à estupidez e infelicidade à consciência feliz, é que se alarga a “filosofia pervertida” que, segundo Jaspers, aniquila a própria filosofia. Quem fecha as portas à filosofia sempre bloqueia o pensamento.
03. Segundo Hegel, “Do ponto de vista do espírito que pensa, devemos considerar a filosofia como o que há de mais necessário”, e para que a “a filosofia surja no povo, é preciso que esse povo comece a abandonar sua vida concreta, a satisfação que lhe proporciona sua vida real”. Mas no Brasil a vida real apartou-se do real. O Brasil oficial converteu-se numa usina para substituir o real pela sensação que o nega. O Brasil do ódio ao pensamento, da aversão à teoria, do fascismo cognitivo, expõe, sem que sobre isso caiba responsabilidade a Hegel, uma lacuna na fenomenologia que o monumental pensador de Iena construiu sobre o espírito: seria um capítulo sobre a consciência feliz da pós-verdade. Exitoso laboratório de falsificação da história e de destruição da memória, o Brasil da pós-verdade daria a Hegel a oportunidade de elaborar a figura final e apoteótica de sua Fenomenologia: a consciência feliz da pós-verdade, repito. Estou certo de que diante dos dilaceramentos sociais que se aprofundam no Brasil desde o golpe de 2016, Hegel, Marx e Adorno, a convite de Lênin e sob o beneplácito e a presença de Aristóteles, Descartes e Kant, aceitariam, com philia, o convite para um simpósio político na Bela Vista em que nasci, em Manacapuru, AM, às margens do portentoso Solimões. Ou em Jaguaruana, às margens do Jaguaribe, lugar da parte nordestina de minha infância.
04. O que mais apavora o desatino e o arbítrio de um governante autoritário é o acesso do povo ao bom senso, ou seja, às mediações necessárias ao uso público da razão. Aristóteles, Descartes e Kant, para aqui mobilizar outra tríade de peso, e cada um a seu tempo e termo, guardam o princípio comum de que a única autoridade aceita no domínio do conhecimento é a que procede da razão. E a razão deve estar a serviço do bem comum.Aristóteles, na Metafísica, admite como natural a inclinação humana ao saber. Descartes principia seu Discurso do Método com a tese de que o bom senso (a razão) é o bem do mundo mais bem dividido. Kant em seu texto programático do iluminismo, Resposta à pergunta: o que é o “Esclarecimento” (Aufklärung), concebe o esclarecimento como uma “determinação original” da própria natureza humana. Ser humano é ser racional. Ser racional e ser social. Como trazer o real à razão? Como manter o princípio ontológico de que o modo de ser do real é a verdade? Como fazer a busca de verdade retomar o itinerário da práxis histórica e dialética?
05. Heidegger atribuía à filosofia a missão de ser a própria “guarda da ratio” (razão). Por ser humana, há sempre a possibilidade da ratio exorbitar de suas medidas e ceder ao arbítrio, aos caprichos de quem se julga depositário de seu destino. O mau uso da razão pode tomar a parte pelo todo e, assim, tornar falso o todo. Numa crítica a Hegel, para quem a verdade é o todo, Adorno argumentou que o todo é o falso. Marx, em sua sabedoria fundada na práxis, fez a necessária mediação materialista, histórica e dialética, ao fazer ver aos dois notáveis contendores que o todo é a síntese contraditória de múltiplas determinações. Mas se Hegel e Adorno, um pela positividade da razão e outro pela negatividade, e ambos dialéticos, dificilmente se criam no Brasil, menos ainda Marx. O que fazer? A saída é pela porta política, dirá Lênin. Somente em linha com a tradição dialética e histórica do método da luta de classes a política pode encontrar no povo sua força material, e o povo encontrar na política sua força intelectual. Resistir à política da morte, do crime e da destruição implica ir além da cômoda militância mediática. Onde há luta por democracia aí se encontra a filosofia.
06. O que é uma Constituição senão uma ratio política? No Brasil, a guarda dessa ratio cabe ao Supremo Tribunal Federal. Mesmo que formal e burguês, o Estado Democrático de Direito brasileiro nos assegura o direito de criticar o Supremo. Fechá-lo ou amordaçá-lo, nunca. O pior Supremo será sempre preferível a um Supremo fechado ou amordaçado. O mesmo aplica-se ao Congresso.País laico, portanto, nem confessional, nem ateu, a Suprema Lei do Brasil é a Constituição promulgada em 1988, não a Bíblia, menos ainda os arroubos exegéticos de sua leitura fundamentalista e fanática. Em que pesem as contradições de uma sociedade secularmente dominada por uma predatória autocracia burguesa, cujos interesses oligárquicos imprimiram suas marcas na Lei Maior do país, a Constituição da República Federativa do Brasil foi elaborada por uma Assembleia Constituinte formalmente representativa do povo brasileiro, com todas as contradições implicadas nesse processo. Guardião e intérprete coletivo credenciado da Lei Maior, o próprio STF é filho legítimo da Constituição.
07. Afinal, o que querem os que se julgam donos da vontade do povo? Que povo? Representa o povo a parte do povo sob manipulação de setores arbitrários do executivo, do judiciário e do legislativo? Podem ser tomados pelo povo a burguesia financeira, as Forças Armadas, as corporações mediáticas, os setores milicianos e parte dos fieis de denominações várias, muitos fanatizados pela pregação de lideranças fundamentalistas? Não há poder soberano, nem do povo, sobre a Constituição. Como, então, ficaria o cristianismo se cada denominação religiosa, ou lideranças “terrivelmente evangélicas”, de forma arbitrária, se atribuíssem o poder de alterar a Bíblia?Se as instituições da República não impuserem freio aos arroubos golpistas em curso, o Brasil poderá entrar em perigosa rota de regressão política e dilaceramento social. “O sono da razão produz monstros", diz Goya. É pela democracia, e somente por ela, quando politicamente enraizada nos princípios da justiça coletiva, que o Brasil pode acertar o seu rumo.“Traidor da Constituição é traidor da Pátria”, diz Ulysses Guimarães.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 7 de setembro do ano do morticínio de 2021.
Foto: Sue Cursino/ ADUA
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