A Reforma Administrativa é um termo muito amplo. Em grande medida, esperamos que “reformas administrativas” ocorram de tempos em tempos. O desenvolvimento do Estado e do Capitalismo e as suas mudanças tecnológicas impulsionam transformações e adaptações. As mudanças podem ser incrementais ou estruturais. Mudanças incrementais preservam, em linhas gerais, a organização do Estado, a sua macrorregulação jurídica, enquanto alteram a base de funcionamento da ação governamental. As mudanças estruturais são amplas como as formuladas na era FHC pelo ministro Bresser-Pereira, fazem a transição da “Administração Pública burocrática para a gerencial”. Essas mudanças podem ser planejadas com um amplo debate social, com pesquisas e comparações históricas de modo a fundamentar as ações de transformação. Mas também podem ser feitas no atropelo, com pouco debate, com pouca pesquisa, com poucas considerações sobre os seus impactos. Mas, afinal, a PEC 32/2020 é uma Reforma Administrativa?
De acordo com pesquisadores em Administração Pública, não exatamente. A natureza e o escopo de uma reforma administrativa implicam na elaboração de um diagnóstico da situação da Administração Pública, a partir de um conjunto de considerações teóricas, que permitem avaliar as condições atuais, de modo que as mudanças propostas possam alcançar os resultados desejados. Podemos ser a favor ou contra a transformação da “Administração Pública burocrática para a gerencial”, mas o fato é que uma base teórica e uma discussão aberta precisam estar em curso.
Os estudiosos apontam que uma das características mais marcantes dessa “reforma administrativa” é a ausência de um diagnóstico teórico baseado na ampla literatura acadêmica do assunto com pouquíssimas considerações sobre os resultados desejados. Uma “reforma administrativa” implica em atender diversos temas referentes ao funcionamento do Estado como, por exemplo, o tema da “governabilidade”. Para ser uma reforma administrativa, a PEC 32/2020 deveria abranger o conjunto dos temas da Administração Pública. Os pesquisadores, no entanto, apontam que o tema da PEC 32 é basicamente de gestão dos recursos humanos no setor público. De modo resumido, são os seguintes pontos:
1) Recrutamento e seleção: o funcionamento dos concursos;
2) Carreira: estruturação de vínculos empregatícios, progressões e promoções;
3) Direitos trabalhistas: retira a estabilidade funcional, muda o regramento das férias, das incorporações, licença capacitação, licença prêmio, adicional por tempo de serviço e jornada de trabalho;
4) Treinamento e desenvolvimento de pessoal: afetando o regramento da licença capacitação;
5) Terminação de vínculo: altera o regramento das exonerações, desligamentos e aposentadorias compulsórias.
De fato, pesquisadores conseguem apontar, com facilidade, que 74% do conteúdo efetivo da PEC 32 estão relacionados com a regulamentação do trabalho do servidor público. Isso sem nenhuma exposição de motivos ou um diagnóstico detalhado do problema que busca enfrentar a partir das mudanças propostas. A ausência de uma base conceitual própria na formulação das mudanças levou à formulação bizarra de novos princípios acionais na Constituição. Já temos imparcialidade, eficiência, publicidade, moralidade e legalidade. Agora, querem acrescentar transparência, inovação, responsabilidade, unicidade, coordenação, subsidiariedade e boa governança.
Segundo os estudiosos do tema, esses novos princípios são redundantes quando consideramos as práticas e o regramento do Direito Administrativo brasileiro. Então, por que acrescentar esses princípios? É como se a formulação de novos princípios pudesse substituir um esforço efetivo deste governo na elaboração de uma reforma administrativa de fato que toma o conjunto da Administração Pública. A PEC 32 ignora a distribuição federativa do funcionalismo público, que tem 10% no governo federal, 60% nos governos municipais e 30% nos governos estaduais. A PEC ignora solenemente que boa parte da ação governamental e das políticas públicas se dá nos municípios, especialmente, por conta da municipalização da Constituição de 1988. Na ausência de uma formulação teórica e de pesquisas empíricas, quais são os pressupostos da formulação da PEC 32?
Os pesquisadores em Administração Pública apontam que os pressupostos estão baseados na ideia de que a estabilidade do funcionalismo público prejudica a estrutura de incentivos que possibilita a melhoria da produtividade e eficiência no trabalho. Mas estes mesmos pesquisadores apontam que, no mundo inteiro, pesquisas indicam que a estabilidade é um fator importante para combater a corrupção e dar legitimidade política em regimes democráticos, especialmente para a aplicação de políticas públicas e de Estado e ainda que critérios de eficiência aplicados em empresas do setor privado não são adequados para o setor público. Ou seja, o fim da estabilidade favorece a corrupção, reduz a legitimidade dos regimes democráticos, dificulta a implementação de políticas públicas e não opera no sentido de criar os incentivos adequados para melhor atuação do servidor. De fato, pesquisas mostram que, quando os servidores estão sujeitos a diferentes regimes de contratação e trabalho, a gestão operacional das atividades ganha maiores graus de dificuldade. Esses resultados são os esperados da PEC 32.
É importante ressaltar que essa “reforma administrativa” como está não vai atender aos efeitos desejados de “eficiência”, de acordo com os pesquisadores da área de Administração Pública. Ser contra a PEC 32 é uma atitude que vai além de uma postura corporativa do funcionalismo público, é uma postura em defesa do Estado brasileiro e de sua capacidade em buscar atender as demandas sociais tão prementes e continuar na luta pela construção de um país que se preocupa em proteger o seu povo.
* Paulo é doutor em Teoria Econômica pela Unicamp. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia Institucional e do Desenvolvimento.
Referência Bibliográficas:
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Foto: Sue Anne Cursino/ADUA
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