Ao que parece até o presente, o Estado Brasileiro tem uma vocação natural para farsa. O povo brasileiro e sua existência têm sido plateia de um show de pirotecnia, vivido uma existência de panis et circenses. A tradição do estado brasileiro para farsa nasce com ele. No “descobrimento” tem a casualidade o elemento primordial, daí se resvalando para a eterna farsa e manipulação como mote nacional.
Ao revermos a história do Brasil, desde quando colônia, sempre foi tratado como refúgio, um lugar pitoresco e aprazível, rico e de fontes inesgotáveis, um lugar para onde se pode fugir e se esconder, à la Dom João VI. O Brasil foi colônia por 315 anos.
Após a derrocada de Napoleão, a Corte retorna para Portugal, o príncipe Regente é aconselhado a pôr a coroa sobre a cabeça, mantendo a Colônia dependente e fonte de riqueza para o império português e não para a constituição de uma nação soberana.
Em 1822, o príncipe Regente, premido pela necessidade de se afirmar como senhor e não como vassalo, declara a “independência” não para construir uma nação, mas para constituir um feudo.
Em 1888, a Princesa Isabel publica a Lei Áurea, não por valor à vida, com repúdio à escravidão, mas pressão das nações amigas. Uma liberdade que lança à própria sorte e ao azar milhares de escravos arrancados de seus países e que, por essas terras, foram vilipendiados de todas as formas. Fez o Estado Brasileiro o que sempre fez com maestria, lavar as mãos.
Após sessenta e sete anos (1822- 1889), entre reinados e um retumbante fracasso na construção de uma Nação Soberana, arma-se no horizonte a constituição de uma República, forjada na noite escura enquanto o povo dormia. Este deitou no reinado e acordou na República. Nascia uma “Res pública” sem povo, uma “Res privada”. Ao que parece, o povo continua em “berço esplêndido” e enquanto “dorme” forja-se uma nação sem povo.
A Nova “Res Pública” nasce velha. O velho ranço. Constrói-se sob os escombros do reinado. Primeira República (1889-1930); Governo Provisório e Constitucional de Vargas (1930-1937) Estado Novo (1937-1945); Quarta República (1945-1964); Ditadura Militar (1964-1985) e Nova República (1985-).
Após a ruptura institucional republicana provocada pelo Golpe Militar de 1964, que perdurou até 1985, esperava-se que a Nação renascesse para a democracia e a liberdade.
No entanto, a Nova República nasce velha, caquética, joga para debaixo do tapete e para o esquecimento institucional os anos de chumbo. Instala-se uma saída “republicana”: a anistia incondicional. Torturados, assassinados e caçados políticos, torturadores, algozes e carrascos foram aquilatados na mesma forma, como se nada tivesse acontecido. A Nova República, após o colapso do governo de exceção, continua com as mãos sujas de sangue.
As décadas e governos que se seguiram – Tancredo Neves e Sarney (1985-1990), Collor e Itamar Franco (1992-1994), Fernando Henrique (1995-2002), Luiz Inácio (2003-2007), Dilma Rousseff (2011-2016), Michel Temer (2016-2018) – estiveram pautados por reformas de conveniências e parcerias com o mercado financeiro, financiamento da dívida pública e poucos investimentos na construção de uma nação soberana e com qualidade de vida. Tem-se presenciado, tendo em vista os pactos assumidos com o sistema financeiro mundial e com as grandes corporações e as agências internacionais um gradual e sistemático processo de destruição do Estado Brasileiro.
A deposição por golpe da presidente Dilma Rousseff (2016) foi a consolidação da ruptura do pacto entre o mercado financeiro e Estado Brasileiro, ficando este submetido a uma agenda neoliberal assumida pelo sucessor Michel Temer. Entre as diversas contrarreformas implementadas pelo Governo Temer (2016-2018) estão: o desmonte das políticas sociais, o avanço privado sobre o fundo púbico e as desonerações tributárias, o que ocasionaram o acirramento das pautas sociais.
O Governo Temer, apesar da mobilização de algumas entidades representativas e segmentos da sociedade civil, aprovou a EC-95, conhecida como a PEC da Morte (PEC 241/2016, quando em tramitação na Câmara dos Deputados, e como PEC 55/2016, no Senado Federal), cujo resultado foi estabelecer um novo regime tributário e impedir, por 20 anos, investimentos em áreas sociais acima do reajuste inflacionário.
Com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, após a retirada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da disputa, o Estado brasileiro, a partir do Planalto, tem adotado duas agendas prioritárias: redução do Estado e patrimonialismo corporativista, que se implementam a partir de ações como ajuste fiscal, destruição do Estado, redução dos bancos públicos, redução dos direitos sociais, etc.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 186/2019 estabelece compromisso com o equilíbrio das finanças do país. Criada pelo Governo Federal e aprovada pelo Congresso Nacional, em 15 de março de 2021, cria novas regras fiscais e coloca um teto de R$ 44 bilhões para o auxílio emergencial, o que é sete vezes menos do que os recursos empregados em 2020.
A PEC 186/2019 não seria necessária. Ela nasce de um artifício do Planalto para “regulamentar” a EC-95, ou seja, acentuar o arrocho da EC-95, criando dois gatilhos que podem ser acionados pela União, Estados e Municípios, caso suas despesas ultrapassem o teto previsto na norma: o congelamento de salários e a suspensão de novos concursos públicos.
A EC 109 (PEC-186/2019) não pode ser interpretada individualmente. Ela é mais um elemento no elenco de medidas que objetivam entre outras coisas a criação de um Estado Mínimo, e a retirada de direitos sociais. Ela precisa ser lida do conjunto de outras contrarreformas já aprovadas pelo Congresso Nacional, destacando-se a Consolidação das Leis Trabalhistas (2017), a Previdência Social (2020) e a EC-95 (2019).
Especificamente a EC-109 dá ao Estado Brasileiro, em todas suas esferas a possibilidade concreta de sucateamento dos serviços públicos de toda natureza, impedindo a progressão e promoção de carreira, a implementação dos Planos de Carreira, os reajustes anuais, e a reposição de vagas de servidores aposentados ou falecidos.
A EC 109 é efetivamente mais uma pá de cal no processo de aceleração da redução e destruição do Estado. Efetivamente, a EC 109 nasce na esteira de uma política econômica que tem como substrato um neoliberalismo arcaico produzido na década de 1970. O mote adotado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é o ajuste fiscal, um completo contrassenso no atual cenário mundial de pandemia, quando deveriam ser garantidos direitos e feitos investimentos públicos em renda e crédito.
Em síntese, a PEC 186 nasce como uma farsa, como um dispositivo de aprofundamento na destruição do Estado aprovado pela EC 95/2016, em primeiro plano, e, no plano geral, como processo em curso de desmonte da Constituição de 1988.
Foto: AGÊNCIA SENADO/DIVULGAÇÃO
*Aldair é professor da Universidade Federal do Amazonas e 1º vice-presidente da ADUA.
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