(…) sempre me movo em contradições dialéticas
(Marx, carta a Kugelmann, 17 de março de 1868).
01. Há 24 anos, em 02 de maio de 1997, o Brasil perdeu o filósofo e educador Paulo Freire. Neste 2021 trazemos à memória o centenário de seu nascimento. Assim como Gramsci se referia ao Mouro de Trier como o filósofo da práxis, a Paulo Freire nos referimos como o educador da práxis.
Na quarta parte do primeiro capítulo do livro primeiro de O capital Marx analisa a mercadoria sob o aspecto de sua compreensão fetichizada, sob o título de O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo: a mercadoria se apresenta aos seus produtores na forma de “uma relação social que existe não entre eles próprios, produtores, mas entre os produtos de seus trabalhos”. No caso, a relação social entre um marceneiro e uma costureira aparece como relação entre a mesa e a toalha, como coisas trocáveis e possuidoras de valor de troca, não propriamente em função do trabalho nelas materializado. Ao fundar sua filosofia da educação na práxis, Paulo Freire concebe o trabalho educativo como espaço de crítica e superação da relação fetichizada entre o trabalhador e o produto do seu trabalho.
02. Segundo Marx, o poder e o alcance do modo capitalista de produção se afirmam de forma local e global como um processo de mercantilização de coisas e pessoas. O caráter mercantil da produção personifica coisas e coisifica pessoas. Ao analisar o caráter fetichista da forma mercadoria, Marx nos diz que “se as mercadorias pudessem falar, diriam: é possível que nosso valor de uso interesse ao homem”. Sob o império do fetiche, o trabalhador não consegue objetivar que o valor de uso oculta o valor de troca e os dois ocultam o valor-trabalho. Paulo Freire chega a Marx pela dialética do tijolo. Ao propor uma filosofia da alfabetização de adultos a partir das relações coronelistas de trabalho vigentes no Nordeste de dos anos de 1960 e não diferentes em 2021, Paulo Freire, num círculo pedagógico dialético, em diálogo com o oprimido, situou o tijolo na cadeia de opressão e exploração das relações capitalistas
de produção.
03. Duas características fundamentais configuram o capitalismo: 1) é um sistema de mercantilização universal, o mais venal entre os sistemas que se organizaram ao longo da história; o que é produzido, é produzido sob a forma mercadoria; 2) é um sistema de produção de mais-valia. Não produz apenas lucro, mas capital. A produção é presidida sob a lógica férrea da geração da mais-valia. Não entra nessa conta nenhuma intenção ou finalidade de produzir valor de uso para atender às necessidades humanas. O trabalhador edifica o condomínio de luxo, mas por força do trabalho alienado a que se submete vê como natural a impossibilidade de nele habitar. O perigo da alfabetização de Paulo Freire foi desocultar no tijolo como valor de uso a dominância do valor de troca.
04. No sistema do capital mais-valia e mercadoria não são realidades dicotomizáveis, passíveis de serem compreendidas em si mesmas. Constituem-se antes como uma unidade socialmente produzida e atravessada de antagonismo. Como nos assegura Ianni: “os seus componentes mais característicos, sejam a mais-valia e a mercadoria, sejam o operário e o capitalista, produzem-se desde o princípio antagonicamente”.
O que fez Paulo Freire? Em diálogo com o oprimido, o oprimido como classe social, construiu mediações que, apropriadas pelo trabalhador, lhe permitiram compreender a natureza ontológica do antagonismo entre capital e trabalho. O antagonismo objetivado conduz à luta de classes e o trabalhador inicia a transição da classe-em-si à classe-para-si. Processo que seria impossível no círculo vicioso e mecânico das técnicas correntes de alfabetização de adultos.
05. O capitalismo tem consciência dessa relação antagônica e sabe como desenvolver mecanismos ideológicos para impedir seu processo de objetivação crítica pela consciência do proletariado. É necessário incutir na consciência do trabalhador a aversão à teoria, administrar o seu tempo livre pela indústria cultural do entretenimento. Roger Bacon, célebre filósofo franciscano do medievo, já apontava os modos como a ignorância se disfarça e o poder cognitivo de sua aparência de saber como um dos quatro obstáculos epistemológicos que bloqueiam a capacidade de objetivação do intelecto. Porque tem consciência do poder do fetiche da ignorância sobre a consciência do oprimido, Paulo Freire pensa a prática educativa como um ato de conhecimento, uma aproximação epistemológica e crítica da realidade. A miséria real que marca a vida e a consciência do oprimido não tem o poder de gerar, de forma mecânica, consciência de classe sobre a própria miséria. Por isso, assinala Ianni: “As relações antagônicas não podem resolver-se a não ser que o próprio capitalismo seja também pensado”.
06. Não é possível prescindir da contribuição de Hegel para pensar a dialética como um sistema de objetivação racional da realidade. Mas é preciso dizer que em Hegel esse processo de objetivação é pensado no plano de uma razão idealizada, abstrata, sem considerar as contradições reais que materialmente condicionam o pensamento. Conforme o Mouro de Trier, “o ideal não é senão o material traduzido e transposto na mente do homem”. É preciso levar Hegel ao chão da fábrica ou colocar em suas mãos o tijolo materializado de dialética e de história da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Pelo tijolo dialético de Paulo Freire a teoria pode se converter em força material ao ser apropriada pelo oprimido.
07. Para a dialética materialista e histórica, que pensa o real como totalidade em que as partes não conformam mecanicamente o todo, antes se relacionam de forma orgânica, é possível ir da mercadoria (a parte), desde a análise do seu fetiche, até chegar à objetivação do regime de produção capitalista (o todo). Em conclusão: 1) Com Marx: “assim como a filosofia encontra as armas materiais no proletariado, assim o proletariado tem suas armas intelectuais na filosofia”. 2) Com Paulo Freire: “a prática de pensar a prática é a melhor maneira de pensar corretamente”. 3) Com Ianni: “é na análise de Marx que o capitalismo se torna transparente, desde as figurações da mercadoria às relações entre as pessoas, desde os encadeamentos entre a sociedade e o Estado às contradições de classes”.
Por fim: com a Pedagogia (dialógica) do oprimido é possível objetivar desde o tijolo as relações sociais de opressão que sustentam o edifício capitalista.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA-Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no dia 02 de maio do ano (ainda) coronavirano de 2021.
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