A dívida pública brasileira teve início logo após a proclamação da independência com o repasse de uma dívida que Portugal havia contratado junto aos banqueiros ingleses. Somente a obrigação de pagar foi repassada ao Brasil, mas o dinheiro nunca chegou aqui. Em seguida, durante a Guerra da tríplice aliança contra o Paraguai (1864 – 1870), novos empréstimos foram feitos para financiar o esforço militar de interesse da Inglaterra. Na década de 1930, o governo de Getúlio Vargas fez uma auditoria1 dessa dívida, que resultou em redução de cerca de metade do estoque da dívida ilegal, reduzindo-se também o volume de pagamentos.
Durante o Regime Militar e na tentativa de legitimar governantes não eleitos, os empréstimos externos foram feitos para dar sustentação também à burguesia que apoiava tal regime. Todavia, a introdução do Plano Real, sob a justificativa de visar a estabilidade monetária, acabou por levar à desestabilização das contas públicas e da economia, fruto da constante elevação da taxa de juros para atrair e evitar a fuga de capitais. Foi assim durante a crise mexicana em 1995, a crise asiática em 1997, a crise russa em 1998 e argentina em 2001.
No entanto, a estabilidade monetária obtida com o Plano Real possibilitou a eleição de FHC que abriu caminho para as várias reformas, o fortalecimento do neoliberalismo e o processo de privatização. A década de 19902 foi marcada também por acordos com o FMI que exigiam a intensificação do processo de privatizações na esfera federal e estadual; a renegociação da dívida dos estados, além do aprofundamento das contrarreformas.
Além disso, o ano de 1997 também representou o colapso fiscal dos Estados. Naquele momento, vários estados ficaram sem pagar os servidores públicos, levando à ocorrência de várias greves de servidores. Fruto da unificação da luta dos servidores civis e militares tivemos em vários estados mobilizações que levaram até à queda de governador. Alagoas foi o caso mais emblemático, onde os servidores que estavam nove meses sem receber realizaram uma grande mobilização entre militares e civis, que culminou com a queda do governador Divaldo Suruagy.
A resposta a este impasse e o cumprimento das exigências do mercado veio com a Lei 9.496/97, mediante a qual a União refinanciou as dívidas dos estados, ou seja, a União passou a dever aos credores dos estados e os estados passaram a dever ao governo federal por 30 anos. Com isso, aprofundou-se o processo de privatização nos estados, com destaque para a privatização ou liquidação dos bancos estaduais. Desta forma, grande parte das empresas estaduais foram privatizadas ou liquidadas, sendo que em quase todo esse processo de privatização ocorreu uso de dinheiro estatal subsidiado, especialmente do BNDES.
No caso dos bancos estaduais tivemos a criação do PROES3 (Programa de Reestruturação dos Bancos Estaduais), que correspondeu à transformação dos passivos dos bancos em dívida pública dos estados, de tal forma que somente a chamada parte saudável dos bancos foi repassada para bancos nacionais e estrangeiros, enquanto que as obrigações dos bancos estaduais que formavam o seu passivo foram incorporadas à dívida pública de cada estado.
Passados vinte anos os estados voltaram a alegar calamidade financeira e exigiram uma nova etapa de renegociação por mais vinte anos e a União, via a Lei Complementar 156 em 2016, mais uma vez exigiu a privatização das estatais restantes, especialmente as empresas de água, novamente com cerca de 80% do dinheiro vindo do BNDES. Além disso, os estados iniciaram um novo ciclo de endividamento interno e externo e incorporaram as reformas propostas pelo governo federal, atacando os servidores e os serviços públicos. Nessas últimas décadas os servidores públicos, das várias esferas, foram colocados como responsáveis pela expansão dos gastos públicos, quando na verdade o serviço da dívida passou a ficar cada vez com uma fatia maior do orçamento público, além de influenciar todo o funcionamento da economia.
A Reforma Administrativa encaminhada pelo governo federal visa sincronizar o fim do serviço público, usando a dívida pública como justificativa. Usar a dívida pública como justificativa para as reformas neoliberais é parte do ritual seguido por vários governos e partidos em diversos momentos do processo de destruição dos direitos sociais nos mais variados países. A atual reforma administrativa proposta é filha tardia desse processo de estabilização da moeda, desestabilização das contas públicas e da economia.
O caráter de classe do Estado fica mais evidente quando analisamos a planilha da Secretaria do Tesouro Nacional4, com dados do Banco do Brasil, que trata da composição da atual dívida dos Estados, em especial a relevância da dívida vinda do PROES sobre a dívida pública dos estados renegociada em 2016. Neste momento podemos ver o impacto dessa incorporação dos passivos dos bancos à dívida dos estados, comprometendo o financiamento dos serviços públicos, conforme dados a seguir.
Em 2016, quando o Estado do Acre renegociou sua dívida pública por mais vinte anos de acordo com a Lei Complementar 156, a participação do PROES no novo saldo devedor era de 93% ou R$ 321 milhões 1 do BANACRE. O Estado de Alagoas tinha uma participação de 35,78% ou R$ 2,3 bilhões derivado do PRODUBAN. O Estado do Amazonas ficava com 100% ou R$ 546 milhões, tendo origem no BEA. O passivo do BANEB representava 72% ou R$ 3,3 bilhões da dívida pública na Bahia. No Ceará o BEC determina 100% ou R$ 879 milhões da dívida que foi renegociada.
No Espírito Santo o BANESTES contribuía com 41% ou R$ 684 milhões da dívida do Estado. Em Goiás o BEG representava 9,5% ou R$ 333 milhões do novo saldo devedor. No Maranhão a participação do BEM foi de 70,7% ou R$ 766 milhões, sobre o saldo devedor renegociado. Em Mato Grosso o BEMAT respondeu por 22,9% ou R$ 490 milhões da nova dívida renegociada.
Em Minas Gerais a participação do BEMGE era de 29% R$ 23,9 bilhões no saldo refinanciado em 2016. O Estado do Pará tinha no BANPARÁ uma participação de 37,57% ou R$ 360 milhões no saldo devedor renegociado.
O Estado do Paraná neste momento tinha uma participação de 90% ou R$ 8,8 bilhões, vinda do famoso BANESTADO. O Estado de Pernambuco tem uma das participações mais elevadas com 92,3% ou R$ 2,9 bilhões, vinda do BANDEPE sobre a dívida pública renegociada em 2016. O Estado de Rondônia tem no BERON 80,1% ou R$ 1,9 bilhões determinando o saldo renegociado. Em Roraima o BANER responde por 53,3% ou R$ 97 milhões do novo saldo devedor.
O BESC tem uma participação 59,3% ou R$ 5,6 bilhões da dívida renegociada em 2016. O Estado do Rio grande do Norte, repactuado pela Lei Complementar 148/2014 tem 100% ou R$ 254 milhões vindo do Bandern. No Rio Grande Sul, o BANRISUL, que não foi privatizado, determina 20% ou R$ 11,6 bilhões do saldo devedor renegociado na referida data. Já no Estado de Sergipe, o BANESE, responde por 10,7% ou R$ 110 milhões, mesmo não tendo sido privatizado.
Para facilitar a compreensão do impacto precisamos lembrar que mesmo esses estados já tendo pago um volume elevado de recursos à União – correspondente a mais de 3 vezes o montante refinanciado na década de 90 – a tabela fornecida pela STN indica que ainda restaria um volume muito grande de dívida originada do PROES, o que compromete o financiamento das universidades estaduais e dos demais serviços públicos.
Os dados apresentados nos remete à necessidade de aprofundamento da auditoria cidadã em cada Estado com um grande destaque para os passivos desses bancos estaduais, que foram transformados em dívida pública, pois onde esta investigação já foi feita se sabe que parte do rombo desses bancos estaduais deriva dos empréstimos tomados pelas burguesias regionais, que detém o poder econômico e por sua vez o poder político estadual e federal; os mesmos que estão defendendo a Reforma Administrativa e que já votaram nas reformas trabalhistas, previdenciária etc.
Dessa forma, a privatização iniciada no final do anos 1990 continua a ser amplificadora da dívida dos Estados, enquanto se tenta a cartada decisiva de liquidação dos serviços públicos com a privatização, com dinheiro do BNDES, das estatais que ainda restam, enquanto os estados continuam a tomar mais dinheiro emprestado junto aos bancos (pagando juros muito mais elevados que os oferecidos pelo BNDES aos beneficiários das privatizações), fazendo renúncia fiscal para os grandes grupos e cobrando impostos de pobres e permitindo ao setor financeiro ganhos ainda maiores, enquanto se inviabiliza a manutenção de serviços públicos essenciais à população. Não troque dívida contraída para favorecer os interesses privados pelas universidades públicas.
1 Ver https://auditoriacidada.org.br/conteudo/artigo-auditoria-e-divida-externa-licoes-da-era-vargas-reinaldo-goncalves/
2 Os acordos vinham se renovando desde a década de 1990. Sobre isso veja nesse livro a partir da página 84 https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Livro-Auditoria-Cidada-da-Divida-dos-Estados.pdf )
3 Ver capítulo VIII do livro “Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados” disponível em https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2020/10/Livro-Auditoria-Cidada-da-Divida-dos-Estados.pdf
4 Ver https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:26242
*José Menezes Gomes (Professor da UFAL, coordenador do Núcleo alagoano pela auditoria cidadã em membro da Rede de Cátedras sobre a dívida pública).
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