01. Era o dia 06 de maio de 1982 no velho Auditório Dr. Zerbini, da então Faculdade de Ciências da Saúde (FCS) da UA (Universidade do Amazonas), hoje UFAM (Universidade Federal do Amazonas). Tarde de muito sol dos luminosos anos de 1980. A ditadura empresarial-militar, que desde o golpe de 1964 sufocava o país, já não mais era associada à ideia de “milagre econômico” difundido pela Ideologia da Segurança Nacional. Desde 1979, muitas das inteligências banidas do país começavam a regressar ao solo pátrio. Dentre essas estava Paulo Freire.
Naquela tarde, de 1982, cursava ainda o 5º período do Curso de Filosofia, no velho ICHL (Instituto de Ciências Humanas e Letras) da UA, que ainda funcionava no prédio do Antigo Seminário São José, da Arquidiocese de Manaus. Era graduando de dois cursos de Filosofia, o da UA e o curso seminarístico do memorável CENESCH, que concluí no primeiro semestre daquele ano. Naquela tarde, de muito calor e de muito ímpeto libertário, Manaus recebia, pela primeira vez, o já mundialmente renomado Filósofo e Educador Paulo Freire, que estranhamente não era formado nem em Pedagogia nem em Filosofia, mas em Direito.
Pelo que se sabe, nem Heráclito, e muito menos Sócrates, a quem ninguém ousaria negar o estatuto de Filósofos, possuíam graduação em Filosofia. Talvez por isso, consciente de minha posição menor, fiz dois cursos de Filosofia. Mas nunca me identifico como Filósofo. Quem generosamente o faz em relação a mim, sem que o mereça, é a Pensadora Social da Amazônia e professora da UFAM, Marilene Correa, e o filósofo Itinerante Marcos José.
02. O Zerbini tornara-se pequeno. Precavido, cheguei muito cedo para garantir um lugar, tendo em mãos o livro Pedagogia do Oprimido, que com muito esforço, naquela tarde, consegui de seu autor um autógrafo. Ainda hoje vivo à procura desse exemplar, que desapareceu de meu acervo. Espero que esteja em mãos seguras e sensíveis. A perda do livro fortaleceu em mim o vigor dialético de seu conteúdo. Em seu "Memoria de Mis Putas Tristes", o escritor maior, Gabriel García Márquez, o nosso querido Gabo, afirma que os velhos podem de tudo se esquecer, menos do lugar onde guardaram seus segredos. Os velhos – e a natureza, como diz Heráclito – gostam, ou são obrigados a se esconder.
O mundo a cada dia é cada vez mais jovialmente positivista, mediático e refratário aos velhos. Ao encontrar as anotações, amarelecidas, que havia feito naquela tarde da conversa dialógica de Paulo Freire com os presentes no encontro histórico do Zerbini, não sei se registrado por filme ou fotografia, vejo que as primeiras palavras que escrevi do Mestre foram: “ninguém está só no mundo. Estamos com o mundo, com os outros ou contra os outros” e que ao educador impõe-se o dever de “procurar compreender a compreensão que o educando tem de sua realidade”. O que só é possível, penso, se o educador seguir o princípio pedagógico freireano de que, sempre, a leitura da palavra é precedida pela leitura do mundo.
03. Nesse 19 de setembro de 2020, se vivo, estaríamos comemorando os 99 anos de nascimento de Paulo Freire, subtraído de nosso convívio aos 75, no dia 02 de maio de 1997. Seria uma comemoração muito tensa, sob dois vírus, o da Covid-19 e o do ódio. O último, abominável sob qualquer aspecto. 56 anos depois do exílio em 1964, no Brasil de 2020 Paulo Freire é vítima de um segundo exílio, mais cruel e obscurantista. Como aceitar e compreender o paradoxo infame de que o pensador brasileiro mundialmente mais reconhecido, com sua Pedagogia do oprimido incluída entre as três obras mais citadas no mundo na área de ciências sociais e humanas, seja também o mais odiado e execrado dentro do Brasil.
A Lei nº 12.612/2012, que lhe conferiu o título de Patrono da Educação Brasileira, está hoje sob ameaça de revogação. Os ataques se intensificaram a partir de 2017 e continuam a tramitar na Câmara dos Deputados três projetos de lei de parlamentares governistas com o objetivo de lhe retirar a merecida homenagem. Assim como a condenação de Sócrates à morte na Atenas da Sabedoria não foi a condenação de um homem, mas da própria Sabedoria, a execração de Paulo Freire no Brasil de 2020 é a execração do próprio ato educativo como prática dialógica da liberdade pessoal e coletiva. Nenhum educador no mundo alcançou estatuto e relevância superiores à contribuição de Paulo Freire para a educação dos povos oprimidos.
04. O célebre Filósofo e Teólogo Roger Bacon, franciscano do período escolástico, antecessor de outro célebre Filósofo, este moderno, Francis Bacon, denunciava a seu tempo as quatro fontes da ignorância, incluindo como a mais danosa ao conhecimento o que denominava como “disfarces da ignorância e a ostentação de um saber aparente”, conforme os medievalistas Philotheus Boehner e Etienne Gilson.
Segundo Roger Bacon, trata-se de “um animal particularmente feroz, que devora e destrói todas as razões”. Estamos aí no século XIII e a crítica de Roger Bacon destinava-se diretamente ao mundo cultural da Universidade de Paris. Desiludido com a inapetência dos estudantes parisienses, o mestre franciscano concebeu ali algo como uma ratio studiorum para a Universidade, mas desistiu. Preferiu voltar para sua Inglaterra.
Francis Bacon (1561-1626) também inglês, e severo crítico da escolástica, recuando sua crítica a Platão e Aristóteles, seguramente conhecia o seu antecessor, Roger Bacon, e embora não o mencione, é muito plausível que sua teoria tipológica dos quatro ídolos (Idola Tribus, Idola Specus, Idola Fori e Idola Theatri) tanto quanto seu ímpeto de reformador do pensamento, sejam devedores das contribuições do circunspecto franciscano. Guardadas as diferenças, ambos se dedicaram ao sempre necessário e atual desafio epistêmico de resguardar a razão das sombras do obscurantismo e do negacionismo, de que hoje é vítima Paulo Freire.
05. Paulo Freire, cuja marca maior de seu método e teoria da educação reside nos fundamentos epistemológicos, pensou desde a Angicos, RN, dos anos de 1960 a educação como um ato de conhecimento, como forma do sujeito alfabetizando apropriar-se criticamente de si e de seu mundo. Não relutou a conferir um conteúdo classista ao seu método de alfabetização de adultos. Tanto quanto Habermas (1929), rompeu com o paradigma do sujeito solipsista cartesiaano. Mas ao contrário do Habermas da temperada e rica Frankfurt, o Paulo Freire da Angicos do Rio Grande do Norte, torrada pela miséria, mais das cercas do que da seca, pagou e continua a pagar um alto preço por sua opção de classe.
O sujeito de seu método educativo não é o sujeito abstrato e burguês da comunidade ideal de fala da Teoria do agir comunicativo habermasiana. Ao contrário, é o sujeito coletivo e oprimido das classes subalternizadas, da América Latina e do mundo. Nunca soube que a Teoria do agir comunicativo de Habermas representasse ao mais importante Filósofo alemão vivo alguma ameaça de exílio. Habermas, na verdade, dá voz a quem já tem voz. Paulo Freire, ao ousar com sua Pedagogia (dialógica) do oprimido criar com os oprimidos espaços de ruptura com o mutismo secular que a autocracia burguesa brasileira impôs ao Brasil das classes trabalhadoras, terminou ele mesmo sendo condenado ao mutismo. Não é uma diferença menor.
06. Não tenho dúvida de que a maior parte da elite intelectual brasileira tenha mais apreço pelo pensamento da intersubjetividade temperada e burguesa de Habermas do que pelo Paulo Freire da Pedagogia da dialogicidade centrada no sujeito coletivo, tostado e oprimido como classe social.
Desconheço se existiu algum diálogo entre Paulo Freire e Habermas. Se houvesse existido, teria sido um diálogo igualmente fecundo para Angicos e Frankfurt. Bem antes de Habermas publicar sua monumental Teoria do agir comunicativo, em 1981, fundada no paradigma da razão intersubjetiva, Paulo Freire, em 1968, já alicerçava sua Pedagogia do oprimido na necessária dialogicidade da prática educativa.
Quanto a mim, tenho admiração e profundo respeito por ambos e jamais ousaria fomentar uma desnecessária e seguramente improdutiva rinha epistêmica entre esses dois gigantes do pensamento. Além do mais, um e outro, a partir de diferentes referenciais, apostam num modelo de razão não cartesiana, dialógica e intersubjetiva. Habermas, aos 91 anos, é um pensador maior nesses tempos de ódio ao pensamento e à democracia. “A filosofia e a democracia, ele nos diz, não só partilham as mesmas origens históricas como também, de certo modo, dependem uma da outra”.
07. A verdade é que Paulo Freire e Habermas são devedores do pensamento dialético de Heráclito. O fogo, em Heráclito, não o que atualmente potencializado pela gramática do capital submete a cinzas a Amazônia, mas aquele associado ao Logos, à Razão, como inteligência superior, divina mesmo, que governa todas as coisas, é o que pode salvar a Amazônia. Aceso por Heráclito na Antiga Grécia, esse fogo dialético, e alimentado de Sócrates a Marx, passando e inflamando os contributos de Platão, Aristóteles, Jesus de Nazaré, Agostinho, Aquino, Espinosa, Kant, Hegel, e toda a tradição do pensamento iluminista, num devir transformador do qual nasceu a pedagogia classista do oprimido, deve se contrapor à regressão obscurantista que ameaça o ser natural e o ser social da Amazônia.
O fogo da venalidade do capital é inimigo da Amazônia, de seus povos indígenas e de sua população caboca, ribeirinha e citadina. Enfim, faço eco ao pensador referencial desse Brasil de “progresso desigual”, Antonio Candido, ao nos dizer, no final do século XX, que “a pedagogia radical de Paulo Freire aponta o caminho com extraordinária lucidez e coragem, ao fazer do ato educacional um processo dialético no qual o educando constrói o conhecimento a partir do contexto, fundindo aprendizagem e experiência social numa aventura de aquisição da liberdade. Por isso o seu famoso método é o das conquistas mais positivas do pensamento humanizador neste século”
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões, em Manacapuru, AM, e Jaguaribe, em Jaguaruana, CE. Em Manaus, AM, no dia 19 de setembro do ano coronavirano de 2020.
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