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  03/06/2020 - por Osvaldo José da Silva



Impacto social e econômico da pandemia alimenta o vírus do racismo



O coronavírus atinge todas as pessoas por todo canto do planeta e por todos os grupos sociais. Não distingue os aspectos de renda, etnia, cor, território, religião, profissão, dentre outros fatores; literalmente não poupa ninguém. Entretanto, há especificidades do impacto social do vírus que não passam despercebidas. Dentre inúmeras variáveis que aumentam o risco infeccioso, está o fator ‘cor da pele’. Alguns podem equivocadamente pensar: “É um vírus racista?!” Efetivamente não, pois ele não possui consciência de como os humanos são atingidos. Então, diferentemente do coronavírus há o vírus do racismo, que é uma construção humana.

 

O maior aumento de óbitos na comunidade negra, em relação ao número de pessoas brancas, revela o fato concreto do racismo estrutural da sociedade e do Estado brasileiro, e também a prática necropolítica de extermínio da população negra. O racismo estrutural viraliza de fato com elementos do preconceito racial contra os negros. Essa viralização se caracteriza como o vírus do racismo, que nem sempre é possível ser visto a olho nu, só é visto sob um olhar mais atento, ou quando se manifesta, sendo extremamente violento com o alvo a ser dizimado: o homem negro e a mulher negra.

 

Segundo dados do IBGE, Ipea, FGV e Dieese os números acerca da pandemia da doença covid-19 só aumentam e apontam que por todas as partes, dependendo da região do país, o número de óbitos de pessoas negras é cinco vezes superior ao de pessoas brancas. Pode-se associar a relação quantitativa do maior número de negros mortos à distribuição de renda no país, na qual 23% da população concentram 77% da renda nacional. Inversamente, os outros 77% da população tem acesso somente a 23% da renda nacional. Desses, os negros compõem 53% da população brasileira que fica com somente 23% da renda. Entretanto, do acesso a esse percentual de 23% da renda nacional, os negros têm somente um quarto da riqueza produzida. Vivemos um apartheid (separação) mais que social, é claramente também econômico.

 

Os efeitos da má distribuição de renda são evidentes: a maior parte da população periférica brasileira, formada por negros, não possui acesso à saúde digna, preventiva e/ou profilática; nem rede universal de esgoto e água tratados, muito menos moradia adequada, transporte público condizente com as necessidades. Há que se ressaltar também que não possui acesso a inúmeros outros direitos sociais, econômicos e políticos. Os negros tornam-se os mais vulneráveis a serem contaminados pelo coronavírus, pois são vítimas do vírus do racismo.

 

Com respeito ao vírus do racismo não há um esforço de “guerra” global, muito menos nacional para a busca da cura. Por ser invisível e seu agente transmissor ser dissimulado e inoculado pela cegueira social, o racismo tende a ser uma doença incurável que esgarça e destrói o tecido das relações entre negros e brancos na sociedade e com o Estado. Contra o vírus da doença covid-19 até podemos ter seu antídoto e sua cura num futuro próximo. Mas, com relação ao vírus do racismo carecemos de remédio ou vacina. É um problema que contamina, destrói e nos mata de maneira às vezes silenciosa, outras vezes escandalosamente acintosa. Há séculos, como nos tempos atuais, o racismo se materializa no genocídio dos jovens negros, e até mesmo com 80 tiros.

 

Há uma pergunta permanente se haverá possibilidade desse holocausto étnico contra os negros poder ser provido de ações para se encontrar o antídoto e a cura. Assim como as pessoas brancas criaram e reproduzem o preconceito racial contra as negras, elas mesmas podem também se dedicar a criar ações de cura contra o terrível vírus.

 

Nada é mais terrível para as mais diversas comunidades negras no cenário sociopolítico e econômico contemporâneo brasileiro do que ter um sociopata no Poder Executivo do país, apoiado por uma horda de psicopatas fiéis, fascistas e fanáticos, portadoras de diversas vertentes de ódio contra si mesmo e contra pobres, mulheres, indígenas e negros. Ora explícitos, ora camuflados nas redes sociais, a ameaça cruel e genocida da necropolítica se torna real para os excluídos e excluídas, que morrem vítimas do vírus racial ou da Covid-19.

 

Sim, Vidas Negras Importam, importam as vidas negras de imigrantes negros: haitianos, nigerianos, angolanos, ganenses, togoleses e muitas outras denominações de negros e estrangeiros que pensavam encontrar oportunidades de vida no Brasil. Importa a vida de negros que frente à pandemia da covid-19, na necessidade de utilizar a máscara facial protetora são considerados suspeitos, às vezes perseguidos ou parados pela polícia. Importa a vida dos negros e negras: idosos, adultos, jovens e crianças que são preteridos no atendimento hospitalar emergencial. Importa a vida dos que sem renda, trabalho, precarizados ou, sem auxílio não têm o mínimo para se manter e manter a própria família. Importa a vidas dos estudantes negros que sem acesso à Web e diante do isolamento social físico não têm como acompanhar a rede de educação escolar. A condição de exclusão sociopolítica e econômica do negro frente ao vírus do racismo é tão peculiar quanto ao vírus da Covid-19; emerge como o desafio estabelecido para a sociedade brasileira e global, visando a que a humanidade como um todo possa se emancipar.

 

Frente a esse cenário, a resiliência se torna a ação primordial dos movimentos negros para evitar a morte no sentido biológico, político e social. E a definição de estratégias para o enfrentamento da pandemia junto a esse segmento populacional implicará no prévio diagnóstico e reconhecimento de suas históricas vulnerabilidades sociais e programáticas no campo da saúde.

 

Além disso, conforme aponta Istvan van Deursen Varga, no artigoVulnerabilidade em Comunidades Rurais, Negras, Quilombolas e Indígenas Frente à Covid-19, noBoletim n. 27, de 24/04/2020, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs),existe a necessidade de promover um processo participativo de identificação e equacionamento de suas necessidades específicas nesse campo e em caráter emergencial no curto e médio prazo, que oriente tanto os gestores e planejadores, quanto os próprios trabalhadores, em sua mobilização.

 

Portanto, as medidas de “confinamento horizontal” de todos os cidadãos, propostas no mundo inteiro – que são indispensáveis, como se sabe, nesta fase da pandemia – necessitam de ajustes ainda mais específicos quando aplicadas às comunidades indígenas, negras e quilombolas e as comunidades tradicionais, de modo geral. Além da vulnerabilidade imunológica, especialmente em comunidades quilombolas, existem circunstâncias sociais e culturais não encontradas na sociedade envolvente, que impõem uma discussão aberta e profunda dos gestores envolvidos e dos planejadores destas ações com as próprias comunidades negras, como mecanismos preventivos e profiláticos ao vírus do racismo e de outras formas de exclusão.

 

Osvaldo José da Silva é doutorando em Ciências Sociais e Membro do Observatório do Racismo da PUC-SP

 

*Artigo publicado originalmente no dia 17 de maio de 2020 em www.redebrasilatual.com.br

 

Foto: PILAR OLIVARES/REUTERS/REPRODUÇÃO







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