A Manaus de 2020, que se fez pós-moderna sem que tivesse assimilado as conquistas básicas da modernidade, se abraça de forma necropolitana com a Manaus de quase 100 atrás, da pandemia da chamada gripe espanhola e sob os escombros a que havia sido reduzida pelo capital de base extrativista.
A orgia gomífera tivera fim em 1912. Paris, Liverpool e Miami permanecem como memória colonizada do colonizador, de dentro e de fora, que sempre se envergonhou de Manaus, com sua face indígena e cabocla e sempre refratária aos modos ditos civilizados, brancos e refinados daquele trio citadino.
Na Manaus de 2020, sob a pandemia coronavirana de hoje, a tragédia da pandemia de ontem parece emergir com maior insanidade e necropotência: a necrópolis produz mortos em série à sombra, e por causa, de um poderoso e complexo Polo Industrial.
Em Manaus, os pobres estão morrendo em casa e sepultados às dezenas em valas comuns. Essas mortes anônimas de pessoas que têm nome e família sequer podem entrar como números nas estatísticas. É a morte programada de quem já não teve vida antes da morte. É muito diferente de quem, contaminado, mora no Morumbi, em São Paulo; no Leblon, no Rio; ou na Ponta Negra ou no Vieiralves, em Manaus.
A miséria social e estrutural desse país secularmente dominado por uma elite genocida, sociopata, arrivista, que não trabalha mas enriquece à custa da exploração do trabalho dos pobres, que põe o Brasil no topo da desigualdade social, desigualdade essa que acompanha os pobres do nascimento à morte, não poderia levar a resultado diferente do que agora ocorre, com ou sem pandemia.
Ouvir o discurso falacioso e escarnecedor de que estamos todos no mesmo barco só pode dar vontade de vomitar, pelo menos quem ainda preserva um mínimo de consciência ética e sensibilidade humana. Não podemos permitir que a medida do hoje e do amanhã seja definida pela psicopatia social dos que nos governam.
*José Alcimar é filósofo, escritor, doutor, analista-político e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Foto: Chico Batata
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