Foto: Bruna Prado
Com ou sem a vênia de meu caro Adorno, de sua reticente sensibilidade sociológica à verdade da cultura popular e sem negar a riqueza heurística de seu conceito incontornável de indústria cultural, conceito mais fecundo hoje do que à época de sua formulação, penso que nem o mestre da Teoria Crítica poderia manter-se indiferente à letra do enredo da Mangueira no carnaval de 2020. Letra irretocável. Uma crítica inteligente e tecida com estética de elevada extração.
O Cristo da Periferia, com sangue índio, negro, dos pobres de todos os povos, em corpo de mulher, a sintetizar o cuidado com a vida, fez a ponte ontodialética entre os morros do Rio de Janeiro e a Nazaré da Palestina. A Mangueira fez teologia em grau elevado. Fez arte da teologia na cadência maior do samba da resistência ao ódio e ao fundamentalismo, religioso ou não. Jesus de Nazaré é do Povo e Filho de Nossa Senhora das Dores do Brasil. Uma aula de teologia rés-ao-chão da vida de todos os oprimidos e na alegria da boa luta, porque na alegria do Povo-Multidão de todas as cores não há lugar para a intolerância nem para Messias de arma na mão, conforme reza a letra.
A despeito da forma global (Globo e consortes) e rebaixada de assimilação dos signos populares, da tentativa de conformar a crítica ao que o velho Marx denominava de "tempo da corrupção geral, da venalidade universal" em que tudo se converte em "valor venal", a verdade ontológica da arte termina por implodir todas as formas e tentativas de falsificação da realidade. Por meio da força popular do samba a arte, na ágora do sambódromo idealizado pelos irredentos Brizola e Darcy Ribeiro, mostrou na rua o Brasil das entranhas. A face histórica de Jesus de Nazaré, mais do que em muitas igrejas e templos, revelou-se como Cristo do Povo-Multidão-sem-medo, no sentido mais espinosista das potências afetivas.
José Alcimar é formado em Teologia e Filosofia e é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe
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