Apresentação
Como parte das comemorações pelos seus 40 anos de resistência na defesa dos direitos das/os docentes de ensino superior, a atual direção da ADUA-SSind. decidiu criar uma revista dedicada à reflexão crítica sobre o nosso país, a nossa sociedade e a nossa Universidade, uma revista de estudos e debates sobre o nosso tempo e os temas que nos dizem respeito.
Nesse sentido, o nome da nossa revista não poderia ser outro: Resistências – Revista da ADUA, afirmando o papel do nosso sindicato e de cada um de nós como sujeitos políticos críticos no mundo e resistentes no tempo em que vivemos.
Para este primeiro número, o tema escolhido foi Ecos e permanência da Ditadura na Amazônia. Com esse tema, Resistências aprofunda o debate sobre o atual momento político que vive o Brasil, inegavelmente um momento delicado, marcado por permanente crise política que se arrasta já há vários anos, colocando em risco tanto as instituições nacionais como as próprias condições de vida em sociedade.
Evidentemente a escolha deste tema não foi gratuita. Inegavelmente podemos caracterizar o governo Bolsonaro e os interesses que se uniram para levá-lo ao poder como uma reedição da Ditadura de 1964-1985, uma Ditadura Reeditada, inquestionavelmente piorada, se é que pode alguma ditadura ser considerada como melhor que outra.
Vale a pena lembrar as palavras de Florestan Fernandes em seu artigo “O significado da ditadura militar”, publicado em 1997, ao analisar as alianças de interesses que levaram ao golpe de 1964, palavras premonitórias e incrivelmente oportunas para descrever os dias atuais em nosso país: “[...] Os fios da contrarrevolução chegam aos nossos dias e de uma perspectiva militar que empobrece e inquieta as próprias forças armadas. [...] A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se.[...] A hegemonia militar perde [perdeu] terreno. A posição estratégica das elites militares – antigas ou renovadas – adquire, todavia, perspectivas de duração e de influência ultracompensadoras. Aquelas elites fixam-se ainda mais como esteio da defesa da ordem. Em suma, elas desprenderam-se da batalha militar (que não ultrapassou a encenação e alguns combates singulares), mas ganharam a guerra política. [...]” (Fernandes, 1997, 147-148).
Se hoje podemos dizer que vivemos uma ditadura disfarçada, devemos reconhecer que essa é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, uma vez que a concepção de país e sociedade que têm os militares hoje no poder, e os civis que a eles se aliam, é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, que levou o país aos desastrosos 21 anos Regime Militar e Ditadura.
Em sua maioria, os artigos reunidos neste nº 1 de Resistências foram escritos por colegas docentes da Ufam e outras Universidades, que responderam à “chamada para artigo” de parte da ADUA. Os 28 artigos aqui reunidos apresentam formatos diversos – ensaios, testemunhos, artigos de opinião e artigos acadêmicos – conformando quatro seções:
- Abrindo o Debate, seção especial com o mencionado artigo de Florestan, que, atualíssimo, lança luzes sobre o atual contexto político brasileiro;
- Ecos da Ditadura na Amazônia, artigos que discutem o impacto e efeitos da Ditadura na formação pessoal e da sociedade local amazonense;
- Permanências da Ditadura, artigos que analisam a herança do Regime Militar e da Ditadura ainda hoje presentes na vida nacional.
- A Ditadura Reeditada, seção especial com o artigo “Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável”, de José Luís Fiori e William Nozaki, que explicita antigos interesses sempre renovados, que constrangem a política nacional à “conspiração” por regimes de exceção, que assinala estratégias, sempre renovadas, de perpetuação da subordinação nacional a interesses imperialistas.
Com Resistências, a Diretoria da ADUA convida à reflexão crítica sobre o tempo em que vivemos, condição indispensável para a construção de uma sociedade mais justa, que acreditamos seja o propósito de todos nós docentes, sindicalizados ou não.
Boa leitura a todas e a todos!
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O Brazil Talhado a Golpes
Em 31 de março de 1964, as forças armadas brasileiras depuseram o governo João Goulart e passaram a comandar uma ditadura patrocinada por empresários de origem nacional e estrangeira, com o apoio do governo norte-americano.
O golpe militar foi, porém, a culminância do movimento inaugurado pela renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, contra todo e qualquer tipo de reforma nacional que apontasse no sentido da democratização da riqueza e do poder.
Não é outro o sentido da aprovação do parlamentarismo como modo de tutelar o governo de João Goulart, o vice de Jânio, em 02 de setembro de 1961. Foi a forma pela qual o Congresso, as forças armadas, o empresariado, os grandes proprietários de terra, as elites eclesiais e a classe média acionaram os dispositivos da contrarreforma.
O que João Goulart representava? A possibilidade de reformas de base necessárias para o avanço da revolução burguesa no Brasil. Eis, porém, que, em tempos de capitalismo monopolista, burguesias nacionais não sejam portadoras de projetos de desenvolvimento minimamente vinculados à nação, portanto, de perspectivas de moldar as sociedades nacionais à sua imagem. Ocorre que burguesias-compradoras, lumpemburguesias, tem apenas uma cara, a de tudo que lhes assegure lucro, nada mais.
Foi assim que, sepultada a experiência de democratização populista, militares, burguesias e classe média alienaram a maioria dos cidadãos dos processos decisórios nacionais e subordinaram as forças produtivas do país aos interesses de quem as quisesse explorar desde dentro, fora ou em associação. Esse regime de superexploração e ultradominação durou 21 anos.
Uma crise econômica, política e social pôs fim àquela barbárie. Mas a saída dela não se fez com ruptura, mas sim, como é da tradição das elites nacionais, por meio de uma ampla e irrestrita transição transada que frustrou as Diretas Já! e permitiu que o passado se impusesse sobre o futuro.
A reconquista dos direitos políticos, civis e sociais veio acompanhada das ameaças e chantagens econômicas do abstrato mercado, cuja encarnação material se revela nos agentes das finanças globalizadas operando em bancos, corretoras de valores, fundos de pensão, empresas, ministérios, think tanks, ONGs, universidades e imprensa.
As chantagens e ameaças convertidas em políticas assumiram a forma do consenso das elites globais, forjado em Washington, em 1989, e imposto aos Estados nacionais com a doce aceitação de muitos dos que os governavam. Nuns cantos do mundo, tratava-se de restaurar as condições globais da acumulação capitalista; noutros, de definir o novo catecismo a ser seguido pelos países que viviam a falência do Socialismo Real. Erigia-se, assim, sobre os escombros das ditaduras capitalistas e socialistas, a Nova Ordem Mundial.
O mundo foi transformado em uma vasta oportunidade de investimento. O que dele não era, precisava tornar-se. A lógica racional, em relação aos lucros, e irracional, em relação a seus efeitos sobre a sociedade, arrebatou corações e mentes. Desregulamentar e desestatizar eram as palavras de ordem. Lucrar, o mantra. E, de par com medidas pontuais que ajudavam a minimizar os danos do compromisso das elites nacionais com o globalitarismo, os governos nacionais brasileiros, entre 1985 e 2016, criaram e mantiveram todas as condições necessárias e favoráveis à dinamização econômica capitalista monopolista-financeira, dentre as quais o câmbio flutuante e as metas de inflação e fiscal.
Para tanto, as elites nacionais promoveram uma profunda contrarreforma do Estado, ajustando-o, estruturalmente, ao que era necessário para ampliar o poder das finanças globalizadas sobre as decisões políticas tomadas nacionalmente. Seguiram à risca o receituário prescrito pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. O “Príncipe dos Sociólogos” sumarizou esse compromisso com a ideia de “liquidar a era Vargas”.
Muitos criam serem essas medidas democráticas, democratizantes e destinadas a estabilizar a economia em crise.
Em 31 de agosto de 2016, portanto, 31 anos depois da “transição transada” e de experiência neoliberal total e matizada, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e as Forças Armadas asseguraram novo golpe, agora contra a presidenta reeleita em outubro de 2014, Dilma Roussef. Dessa vez, porém, não se depôs alguém que se notabilizasse pela luta por reformas de base. Muito ao contrário. Açoitada pelos desdobramentos da crise econômica mundial de 2008, a militante que fez frente à ditadura militar tornara-se vítima das políticas de conciliação nacional com o neoliberalismo global e, para driblá-las, aprofundou-as, com medidas de austeridade e controle social combinadas com generosidade fiscal para os mais ricos. Ainda assim, caiu!
Tomou seu lugar Michel Temer, cujo projeto era construir uma ponte para o futuro. Em seus pouco mais de dois anos de governo, liquidou com a legislação trabalhista e aprovou o congelamento de investimentos públicos em saúde e educação por vinte anos, para ficar em dois exemplos que indicam que o futuro do país sonhado pelas elites nacionais nos remete ao Brasil escravocrata e pré-republicano.
O futurismo reacionário segue com o sucessor de Temer. Com o voto da maioria dos eleitores, um capitão expulso do Exército, cuja bandeira política é a violência acima de tudo e contra todos os que não correspondam a seu moralismo epidérmico, além do compromisso com a liquidação do que resta da nação. Que seja uma figura tão rebaixada a que preside o país assusta menos do que o fato de o fazer com o referendo do voto da maioria dos que foram às urnas em outubro de 2018.
O sucesso político do neoliberalismo só é proporcional ao fracasso econômico e social do capitalismo que nele se inspira, quando se pensa nas condições de vida da maioria dos cidadãos do planeta.
As ditaduras continuam a nos assombrar. Agora, porém, com a aura do voto e da vontade popular a revesti-las. A unificá-las, ontem e hoje, um mesmo propósito: aprofundar a superexploração e a ultra dominação. A diferenciá-las, as de ontem e as de hoje, as técnicas golpistas. Ontem, golpes militares sustentados por civis. Hoje, golpes civis sustentados por militares. Nos dois casos, golpes “com o Supremo e com tudo”. Em qualquer caso e em qualquer tempo, estão em causa os limites da democracia burguesa e a capacidade dos setores progressistas das sociedades nacionais de, num esforço global, confrontar os cães de guarda das “democracias globalitárias” hoje existentes, com vistas a criar as condições para que Estados sejam governados pelo compromisso político e econômico de liquidar as desigualdades e assegurar a liberdade para todos.
Marcelo Seráfico, Departamento de Ciências Sociais, Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Amazonas (UFAM), marcelo.serafico@gmail.com
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