"Porto de Lenha, tu nunca serás Liverpool, com tua cara sardenta e olhos azuis. Um quarto de flauta do alto Rio Negro, pra cada sambista paraquedista, que sonha o sucesso, sucesso sulista, em cada navio, em cada cruzeiro das quadrilhas de turistas”. A frase, extraída de uma das canções-símbolo da capital que um dia abrigou o altivo povo Manaó (perseguido à extinção pelos portugueses do século XVIII), é uma grande expressão artística de um modus operandi hegemônico em toda a região amazônica ainda hoje: a lógica colonial. É essa lógica, empreendida desde os primeiros anos da invasão lusitana, que se faz presente no Brasil e na Amazônia
A região, outrora subordinada diretamente à Coroa Portuguesa e tendo como denominação o “Grão-Pará” (e outros sobrenomes), sempre foi considerada pelos colonizadores como algo “distante da civilização”, seja essa civilização europeia ou "sudestina" aos moldes de um eixo Rio/São Paulo. Uma “hinterlândia”, território longínquo, inóspito e agressivo para àqueles que ousavam nele adentrar. E assim o sertão verde foi tratado por séculos... As mudanças, essa força vital que move a história, só vieram lá pela terceira década do distante 1800, quando uma importante ruptura acontece. Em Belém (hoje do Pará) – à época capital da Amazônia –, milhares de pessoas formadas pelo caldo cultural de índios, negros e mestiços (aqueles párias indesejáveis de uma sociedade esquecida no meio de uma gigantesca floresta cercada por rios de todos os lados) ousaram se insurgir contra o que hoje chamamos de status quo. Sua principal reivindicação? Fazer parte de uma Nação que estava surgindo aos trancos e barrancos, o Brasil. A esses “indesejáveis” é dada a alcunha de “cabanos”, moradores de palhoças miseráveis, insignificantes seres que persistem em existir. Fácil saber quem os batizou com tão voraz asco; difícil é entender o quão importante é o legado que esses milhares de anônimos deixaram para as gerações futuras radicadas na região e às margens de seus rios mais distantes, os que se organizam para resistir e lutar, os movimentos sociais.
A Amazônia moderna, sobretudo a das últimas cinco décadas, foi um laboratório de experimentos do Capital em sua versão mais “selvagem” (como diria um ex-presidente do Brasil – o “príncipe dos sociólogos” – que um dia pediu para que sua obra fosse esquecida...). O Governo civil-militar (uma ditadura que durou 21 anos com a parceria de grupos civis da elite brasileira e a nata das forças armadas, todos sob os auspícios do “grande irmão” norte-americano) implantou os principais projetos para a região, muitos deles vigentes até os dias de hoje, promovendo, para milhares de migrantes pobres do Brasil (principalmente do Sul e Nordeste) a promessa de uma “terra sem homens para homens sem terra”. Simultaneamente, o governamental incentivou empresários e grupos políticos locais e nacionais a comprarem grandes porções de terra. Duas iniciativas de “povoamento” da Amazônia em colisão anunciada. A primeira, sem as condições básica elementares, deixando milhares de famílias anos mais tarde a sua própria sorte pela ausência das políticas estatais. A segunda, o embrião do agronegócio voltado para a monocultura e o latifúndio. Cenário propício para o crescimento de inúmeros problemas sociais, concentração fundiária e da violência no campo.
Além disso, a exploração dos diversos recursos naturais da região com o discurso de impulsioná-la economicamente virou um dos mantras mais pronunciados pelo Governo da época. O nome é novo, mas a ideia é velha: a exploração das commodities imersa em uma lógica colonial predadora. Para efetivá-la, seria preciso remover os “empecilhos” naturais como, por exemplo, as centenas de povos indígenas e populações tradicionais que estavam às margens das futuras rodovias, barragens e grandes obras que seriam construídas no intuito de “desenvolver” a Amazônia.
A consequência não esperada pelo aparato ditatorial (e os governos que se seguiram a ele) foi o surgimento e consolidação de inúmeros movimentos e organizações sociais, sobretudo nos lugares onde foram implantadas grandes obras de infraestrutura, como no caso das rodovias Transamazônica, Santarém-Cuiabá e das usinas hidrelétricas de Tucuruí e Belo Monte, esta última batizada inicialmente com o nome de Kararaô, uma “homenagem” dos brancos aos povos indígenas que viviam às margens do Rio Xingu.
A partir desse conjunto de ameaças, uma série de movimentos sociais surge na região amazônica. O único caminho possível é resistir. Foi o caso, por exemplo, do movimento indígena pluriétnico que, somente na década de 1970, teve as condições de se organizar nacionalmente, apoiado por um grupo progressista da Igreja Católica, os religiosos da Teologia da Libertação. Juntaram-se a ele o movimento de mulheres, sindicatos, trabalhadores rurais sem terra, trabalhadores urbanos sem teto e diversos protagonistas que emergiram na luta contra a sobreposição de conflitos socioambientais em áreas urbanas e rurais.
Alguns desses movimentos se consolidaram ao longo das últimas décadas e transformaram bandeiras de luta em políticas públicas (com muito esforço, sangue e lágrimas). Foi o caso da legislação que ampara os direitos e a demarcação de territórios indígenas e o uso social da terra visando facilitar a reforma agrária, promulgadas pela Constituição de 1988. Obviamente a letra da lei sozinha não resolve os problemas, alguns deles seculares.
A Amazônia hoje mais do que nunca está no “olho do furacão” dos principais debates do mundo. A complexidade da relação de seus biomas com o equilíbrio climático ainda não é entendida em sua totalidade, mas já há dados concretos, respaldados por importantes instituições científicas em todo o mundo, de sua importância para a manutenção da vida em todo o planeta.
As ameaças contra a maior floresta tropical do mundo e seus povos estão cada vez mais fortes. Infelizmente, em pleno ano de 2019, o Governo brasileiro que deveria protegê-la é um de seus principais algozes. Novamente se faz presente a necessidade da resistência coletiva dos “de baixo”. Na verdade, essa necessidade nunca deixou de existir ao longo de nossa história permeada pela desigualdade e exclusão social. Aqueles que estarão na linha de frente em defesa da Amazônia? Não tenho dúvidas: os movimentos sociais. Indivíduos, grupos e coletivos atuando de forma local e global, no território amazônico e fora dele, mobilizados e articulados através de redes de luta e resistência, os “novos cabanos” do século XXI.
*Lucas Milhomens é doutor em Educação pela Unicamp e coordenador curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam/Parintins).
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