Ignorando a ciência e a vida e privilegiando a politicagem e a “economia” para os grandes empresários, governantes decidiram acabar com a quarentena imposta pelo coronavírus no Brasil e no mundo. Em meio a picos de contágio e mortes ocasionados pela doença, a reabertura econômica foi decretada. O cenário é da prevalência do capital: o lucro acima da vida da classe trabalhadora.
Após sofrer um colapso do sistema de saúde e funerário e no epicentro da crise sanitária, Manaus foi uma das cidades a aderir a retomada. Apenas dois meses depois de decretar estado de calamidade pública (23 de março de 2020) e suspender o funcionamento dos estabelecimentos comerciais e de serviços não essenciais, o governo do Amazonas decidiu pelo que chamou de “liberação gradual das atividades econômicas”.
No período da retomada, o Brasil ocupava o epicentro da doença no mundo e era o segundo com mais mortes e casos, atrás apenas dos EUA, ultrapassando as marcas de 50 mil mortes e de 1 milhão de infectados. Com o registro de cerca de mil óbitos por dia, a orientação da OMS de manutenção do isolamento social é ignorada. Durante o segundo ciclo programado do comércio (café, panificadoras e fast food), em 15 de junho, Manaus registrava 56 mil pessoas contaminadas e 2.512 mortes.
Na ocasião, o professor da Ufam e integrante da equipe de pesquisadores que coordenou o estudo “Curva de Contaminação Covid-19 – Estado do Amazonas”, Wilhelm Alexander Steinmetz, afirmou que um novo aumento de casos – sobretudo, com a reabertura, era considerado. “Por mais que tenha havido queda no número de internações, isto não exclui a possibilidade de ter aumento nas próximas semanas. Esta queda pode dar a ilusão às pessoas de que a pandemia passou”.
Em debate online de docentes da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz, Jesem Orellana, afirmou que considera as ações de reabertura como “ignorância da realidade”. “Em algumas cidades, como Manaus, parece que estamos naturalizando a desgraça. Tivemos um violento aumento no número de casos e um momento histórico, trágico, um dos capítulos mais tristes da história da saúde pública brasileira”.
Para tentar convencer a população a voltar às ruas, muitos governantes usam o argumento de que o pior já passou, mas o cientista desmente. “Existe o risco residual importante. É um termo completamente desconhecido pelos gestores. Acham que se passamos pela pior parte, que o problema está resolvido. Não. A história mostra que a segunda, a terceira onda, a depender das condições, é inevitável”, disse Orellana.
O médico do trabalho e professor Fernando Ribas Feijó, relata que existem meios de medir se o pior já passou e, analisando os dados, a resposta é não. “Para termos uma epidemia controlada, precisaríamos ter algo conhecido como imunidade de rebanho, ao menos 60% da população com anticorpos. O que vemos em estudos de universidades federais é que este número está, em Manaus, por exemplo, que tem uma das maiores prevalências do Brasil, em 15%, estamos muito longe de atingir”.
Feijó alertou, ainda, que caso tudo volte ao normal, o risco de um novo aumento de casos e mortes é muito alto. “Cerca de 80% ou mais das pessoas têm possibilidade de se infectar. Então, (são necessários) isolamento social, uso de máscaras, medidas de higiene – principalmente o isolamento, que diminui a velocidade de transmissão e o número de infectados. É cedo para se falar minimamente em controle”, afirmou.
Voltar a sorrir?
Paralelo ao decreto da retomada da economia, o governo do Amazonas divulgou campanha publicitária em que afirma que “agora podemos voltar a sorrir”. A Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI), da qual a ADUA faz parte, publicou, em 19 de junho, um manifesto em repúdio à publicidade. Há, conforme o documento, um contraste desrespeitoso entre o foco publicitário e a realidade dos povos do Amazonas.
“Não podemos voltar a sorrir! Porque a morte, pelo coronavírus, continua. Todos os dias, nos entristecemos com pessoas queridas, lutadoras e lutadores do direito à vida, do respeito aos direitos da pessoa humana, mortas por esse vírus e por falta da atenção médica em tempo hábil”, afirma trecho da nota da FAMDDI.
O manifesto chama atenção que a propaganda poderia ter foco em elementos agregadores do enfrentamento da crise e do valor da busca conjunta e solidária da superação deste momento. “A criatividade publicitária é capaz de produzir campanhas espetaculares e, por meio delas, impulsionar condutas positivas, amorosas, incentivadoras da superação de situações difíceis. Neste caso, o voltar a sorrir tripudia sobre os doentes, as famílias e os amigos enlutados, para valorizar o aspecto econômico que se impõe sobre todas as vidas e todas as dores”.
A CSP-Conlutas, a qual a ADUA é ligada, defende que os governos precisam decretar 30 dias de quarentena geral e garantir as condições para que a população fique em casa. “Eles não podem simplesmente decretar a morte de milhares de pessoas. Primeiro é a defesa da vida. É óbvio que os trabalhadores precisam de salários para se alimentar e ficar em casa. Por isso, é preciso garantia de estabilidade no emprego, salários integrais. As pequenas empresas precisam ter condições para poder enfrentar a quarentena e precisam de crédito para manter os empregos. Mas isso é dever do governo Bolsonaro, governos estaduais e prefeitos destinarem recursos públicos emergenciais até que a situação possa, de fato, voltar à normalidade”, afirma o integrante da Secretaria Executiva Nacional da Central, Atnágoras Lopes.
Economia da morte
Pouco antes da reabertura do comércio na região, a ADUA já vinha se manifestado contrária à ideia e apoiando o lockdown. A Seção Sindical do ANDES-SN e mais de 50 entidades ligadas a categorias profissionais, igreja católica e organizações indígenas lançaram, em maio, uma carta-manifesto exigindo a adoção do bloqueio máximo no Amazonas para conter o avanço do coronavírus.
As entidades chegaram a convocar os ministérios públicos Estadual (MPE), Federal (MPF), do Trabalho (MTE), a Defensoria Pública do Estado e da União e a Ordem dos Advogados Brasil (OAB) para ingressarem com ações a fim de que seja adotado o bloqueio máximo no Estado.
“Em pleno pico e crescimento do surto, o Governador apresentou um plano de reabertura das atividades econômicas ainda no mês de maio e o Prefeito de Manaus se exime de tomar medidas mais sérias para isolamento, mantendo inclusive feiras e mercados públicos abertos, como se nada estivesse acontecendo e negligenciando a dignidade humana que todo cidadão tem direito, também após morte”, analisam.
No documento, as entidades afirmam que no Amazonas prevalece a política que mata para salvar a economia da morte, capitaneada pelo presidente da República, assumida e concretizada no Estado pelo Executivo (Governo e Prefeito de Manaus), pelo Legislativo (Assembleia e Câmara) e pelo Judiciário.
“Diante dessa política de morte, usada para salvar a economia da morte – para qual não importa quantos seres humanos serão dizimados -, como cidadãos e cidadãs, agrupamentos da sociedade civil organizada, manifestamos nossa mais firme e forte indignação e repúdio contra o descaso, a negligência, a insensibilidade dos Poderes Públicos constituídos, ao nosso direito fundamental à vida e à saúde, bem como à dignidade humana após a morte de nossos irmãos e irmãs”, afirmaram na carta-manifesto.
Entre toda as ações de conscientização e alerta à população em relação a Covid-19, a ADUA realizou, no início de junho, a live “A Abertura das Atividades Econômicas no Brasil em meio a Pandemia”. O tema foi debatido - e transmitido ao vivo pelo Facebook e Youtube – pelo docente Wilhelm Alexander e professor do curso de História da Unioeste, Gilberto Grassi Calil, com mediação da docente da Ufam, Ana Cláudia Fernandes. Na ocasião, os professores mostraram dados científicos que comprovavam que a reabertura era um erro, que sacrificaria a vida de muitos trabalhadores e trabalhadoras.
No mesmo mês, o ANDES-SN - juntamente com as entidades que integram o Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe) - protocolou, um ofício no Ministério da Economia, em defesa da prorrogação do período de isolamento social cumprido pelos(as) trabalhadores(as) do serviço público federal. O governo exige a retomada do trabalho na sexta-feira (22/05).
A solicitação do Fonasefe não é somente para evitar o avanço da contaminação pela Covid-19, preservando vidas dos (as) servidores(as) públicos(as) federais, mas para evitar o colapso no sistema de Saúde que tenta dar conta da demanda de doentes. No documento, o Fórum alertava que a tendência era de agravamento da pandemia.
“É importante que todos os setores do governo estejam cientes das responsabilidades e dos riscos que estarão assumindo com a reabertura das unidades de trabalho, onde a maioria dos segurados faz parte daquele setor da população acima de 60 anos, pessoas do grupo de risco que terão suas vidas expostas, se contaminando pelo ambiente e contaminando os servidores”, ressaltaram, na ocasião, as entidades no documento.
Sobre a decisão de “retomar a economia” também se manifestou contrário um grupo de pesquisadores(as) da Ufam, Inpa, UEA, UFMG e Instituto Butantan. Na nota técnica de avaliação e diretrizes para tomada de decisões frente à pandemia da Covid-19 em Manaus, divulgada no dia 27 de maio de 2020, os cientistas alertavam: “a retomada das atividades pode colapsar não apenas o sistema de saúde do município, mas interferir no grau de risco para todo o Estado do Amazonas, dada a concentração de UTIs na cidade de Manaus”.
Na análise, os pesquisadores afirmam que escalonar o retorno ao trabalho baseado no aumento da imunidade de rebanho ou na suposição de que a população poderia ter atingido a imunidade de rebanho, pode resultar em retorno da propagação exacerbada da pandemia. Até 14 de maio, pesquisas apontavam que entre 10% e 15% da população pode ter sido infectada (coincide com a pesquisa nacional da UFPEL), o que invalida a hipótese de “uma imunidade de rebanho para a cidade e que a população está longe de adquirir tal imunidade”.
Neste sentido, a ADUA, o ANDES-SN, a CSP-Conlutas, o Fonasefe e diversas entidades denunciaram de diferentes formas que a tal “retomada gradual da economia” nada mais é do que mais uma face da necropolítica, que privilegia o lucro em detrimento da vida. Em meio à maior crise sanitária dos últimos 100 anos, o Sindicato manterá o seu papel no combate e denuncia desse genocídio e em defesa da vida da classe trabalhadora.
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